Os apaixonantes
Pastoris
Pedro
J. Bondaczuk
O folclore brasileiro,
com seus folguedos e outros tipos de manifestação populares, é cada vez menos
conhecido das novas gerações, ao contrário do que seria de se esperar. A
televisão, o rádio, o cinema, a internet e outros tantos veículos de
comunicação e informação poderiam (e deveriam) difundir mais essas expressões
genuínas da alma brasileira, nossas autênticas raízes culturais, mas não o
fazem. Por isso, várias dessas expressões espontâneas de nossa gente, não faz
muito bastante concorridas, se tornam cada vez mais escassas e raras e sofrem a
ameaça de desaparecer na onda da tal da globalização. Uma pena!
Há quem defenda – e
incluo-me entre essas pessoas – a criação de matéria específica de Folclore nas
escolas brasileiras de todos os graus, para que tais tradições, cultivadas por
séculos, por várias gerações, sobrevivam, mesmo sofrendo eventuais
modificações. Ao que me consta, porém, não há nenhum plano, ou sequer remota
cogitação nesse sentido. Trata-se, no mínimo, de calamitoso descaso das
autoridades com nossas raízes culturais. A globalização (a que não me oponho)
deveria ser um acréscimo de informações de toda a espécie e não mero processo
de “substituição”, de esquecimento do passado sob pretexto da construção do
futuro.
Entre os folguedos
brasileiros mais tradicionais, um dos que já foi muito popular, sobretudo no
Nordeste, com destaque para os Estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do
Norte, é o Pastoril. Ele integra o chamado “Ciclo Natalino” da região. Houve
tempos em que foi requisitadíssimo, sobretudo em Olinda e no Recife. É verdade
que não desapareceu de todo, mas atualmente é relegado à periferia dessas
metrópoles, além de algumas pacatas cidadezinhas do interior, cada vez em menor
número.
A origem do Pastoril é
situada, por alguns historiadores, na remota Idade Média, mais especificamente
na terceira metade do século XIII. Ele surgiu, simultaneamente, em vários
países da Europa, com destaque para a Espanha e do que viria a se tornar o
atual Portugal. No início, era apenas um auto natalino, representação teatral
do nascimento de Jesus – a exemplo do que ainda se faz hoje em relação à Sua
paixão e morte – com enfoque, portanto, exclusivamente religioso.
À medida que o tempo
passava, no entanto, foi sofrendo modificações, adaptações, “modernizações” das
quais a principal foi a interação entre a platéia e os atores, implicando em
improvisações fora do contexto. Nem todos, porém, aceitavam essas
interferências externas e não programadas. Não tardou para que se formassem
duas correntes: uma, a dos “puristas”, caracterizada pela encenação ortodoxa do
nascimento de Jesus, que receberia mais tarde o nome de “Presépio” e “Lapinha”
e outra dos “inovadores”, admitindo crescente participação espontânea dos
espectadores, interferência esta levada às últimas conseqüências, que são os
Pastoris, como conhecemos hoje.
No Brasil, tivemos as
duas correntes, mas em períodos diversos, ambas trazidas (óbvio) de Portugal.
Por algum tempo, frise-se, uma e outra conviveram paralelas. O primeiro
Presépio de que se tem notícia surgiu no Convento de São Francisco, em Olinda,
em fins do século XVI. Essas manifestações de fé popular ainda persistem, mas
restritas a rústicas igrejinhas católicas do interiorzão do Nordeste.
Já o Pastoril, embora
não deixasse de evocar a Natividade, ganhou características independentes e
peculiares. Acabou se transformando em uma grande folia, que em certos aspectos
evocava (e evoca), no que diz respeito à participação do povo, o Carnaval. Seu
personagem central é o Velho, ou Bedegueba, uma espécie de bufão, que dialoga
com as pastoras, esparramando obscenidades que, não raro, descambam para a
pornografia. Brinca com todos, não somente com os que estão no palco
(geralmente improvisado em algum coreto), mas com todo o público presente.
Não raro, todavia,
passa do tom. Faz pilhérias escatológicas com os espectadores, e tão
“apimentadas”, que de vez em quando o alvo das chacotas se sente ofendido e
parte para a briga. O Velho é pago para fazer essas provocações, denominadas de
“bailes”, que a maioria encara numa boa, mas que alguns se ofendem e às vezes
chegam a recorrer à violência. Os cronistas do Recife relatam, por exemplo,
alguns pastoris antigos, realizados nos arrabaldes da cidade, que terminaram em
conflitos generalizados, com punhais, pistolas e muitos socos e pontapés –
dissolvidos com a nem sempre
providencial e moderada interferência da polícia – causados pelos
excessos do Velho. Muitos dos seus “Bailes” ultrapassavam, como dá para se
imaginar, os limites do bom senso e da razão.
A maioria dos Pastoris,
porém, não terminava (e nem termina, pois estes ainda ocorrem com alguma
freqüência no Nordeste), em confusão e pancadaria. Muito pelo contrário. E o
bufão, ou Bedegueba, raramente chega, em suas provocações, às raias da ofensa,
pelo menos da que requeira eventual retratação. Cabe-lhe, ainda, além desse
papel de animador, comandar os leilões de rosas e cravos que enfeitam as
pastoras, e que recebem lances não raro exorbitantes. O montante arrecadado é
dividido entre os atores participantes, ou então é destinado a instituições de
caridade. Um dos pontos altos desse folguedo é a disputa que ocorre entre dois
cordões, com torcida apaixonada para as duas facções.
A competição envolve dois
grupos. De um lado, fica o cordão de pastoras Encarnado e de outro, o Azul.
Vence o que tiver maior torcida. Entre os dois cordões, há sempre um elemento
neutro, para moderar a competição. Trata-se de uma bailarina denominada de
Diana, que dança entre os dois grupos, trajando vestido em que metade é
encarnada e a outra metade é azul, para simbolizar sua neutralidade. E a
torcida vibra, apupa, aplaude, xinga, elogia, enfim, participa, com entusiasmo
tal que não fica nada a dever aos torcedores dos grandes clássicos de futebol.
Muito ainda poderia ser
dito sobre os Pastoris, mas deixo isso a cargo de escritores, notadamente de
cronistas, que exploraram e ainda exploram o tema com talento, graça, beleza e
veracidade. Torço, porém, de todo coração, para que essa manifestação popular
(expurgada, claro, dos eventuais excessos, que sempre são ruins) sobreviva
ainda por gerações e mais gerações e que o máximo de pessoas, de brasileiros de
todas as partes e condições econômicas e sociais, tomem conhecimento da sua
existência, participando dela ou não. Quem já tomou parte desse folguedo é
testemunha que o Pastoril é apaixonante!
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