Sunday, October 06, 2013

Capitalismo de pilhagem

Pedro J. Bondaczuk

Os chamados “temas sociais” são rica e inesgotável fonte temática para escritores atentos, observadores e criativos, na elaboração de seus enredos. Refiro-me, especificamente, aos ficcionistas. Dá para fazer uma ficção interessante e que prenda a atenção do leitor e, simultaneamente, útil e proveitosa, do ponto de vista social? Claro que dá! Se o literato tiver talento – e se não tiver, o recomendável é que busque outra atividade que não a literatura – poderá denunciar as mazelas e contradições, de regimes, governos e ideologias, sem recorrer a um rançoso dogmatismo. É a ficção posta a serviço da realidade, conscientizando as pessoas para o que está errado, distorcido, equivocado, induzindo-as a tentar mudar o que deva ser mudado.

Posso citar centenas de escritores, notadamente romancistas (mas não só eles), que pintaram (pintam), posto que  com palavras, quadros sombrios de misérias, injustiças e exploração do homem pelo homem, sem que precisassem (e nem precisem) ser panfletários ou dogmáticos. Expuseram (e muitos expõem) tais mazelas com naturalidade, pela boca de personagens e/ou, principalmente por suas ações, conferindo às suas denúncias não só verossimilhança, mas credibilidade. Foram os casos no passado, por exemplo, dos romances de Charles Dickens, expondo as vísceras sociais, de miséria e exploração humana, de uma Londres que a maioria ignorava ou (o que é mais provável) fingia ignorar; dos de Fedor Dostoievski, mostrando uma Rússia czarista em que havia mal disfarçada escravidão (e branca) ou dos de Victor Hugo, notadamente em “Os miseráveis” e “O corcunda de Notre Dame”, entre tantos e tantos e tantos outros.

Os conceitos óbvios são, não se sabe por que, os mais difíceis de as pessoas assimilarem, em especial quando se trata de tema econômico. Exemplo disso é a constatação do escritor E. Schumacher, quando afirma que “a economia como conteúdo de vida é uma doença mortal, porque o crescimento infinito não se ajusta a um mundo finito”.

Em resumo, cada vez mais o homem precisa achar uma atividade que lhe permita obter o sustento para si e para a família. As riquezas mundiais concentram-se, crescentemente, em menos mãos. Pode-se dizer, hoje, que metade da humanidade sobrevive em condições cada vez piores, parte considerável da qual na linha geralmente aceita como abaixo da pobreza, que é a miséria.

Há pouco tempo julgava-se que miseráveis existissem somente no chamado Terceiro Mundo. Ou que fosse o lado perverso do capitalismo. A desagregação da União Soviética e a adesão da China à economia de mercado mostram que o comunismo (não o da utopia, o da teoria, mas o da prática) estava longe, muito distante de criar a sonhada sociedade igualitária, sem classes, onde tudo seria dividido por igual.

O caso chinês é o mais expressivo. Enquanto os moradores das grandes cidades, como Pequim e Xangai, passaram a conhecer a prosperidade e a ter recursos para investir no supérfluo, hordas enormes de camponeses vegetam nos limites da resistência, assoladas pela fome, pelas doenças e pela ignorância que se torna endêmica. A alternativa, porém, não é este capitalismo predatório, de espoliação e de pilhagem, que aí está.

A poderosa Europa Ocidental, os Estados Unidos e o Japão (em menor proporção) também têm seus mendigos, seus desabrigados, seus “homeless” (sem-teto), que certamente aumentaram muito em decorrência da recente crise econômica que ainda assola essas sociedades opulentas. Na França, por exemplo, o Abade Pierre chegou a renovar, ainda em 1994, a campanha que fez no pós-guerra em favor dos miseráveis. E isso antes que “estourasse” a tal “bolha imobiliária” que deflagrou a atual crise no âmbito dos países membros da Comunidade Econômica Europeia. Nos Estados Unidos, os miseráveis já passam dos 40 milhões. No Brasil, nem é bom tornar a falar, pelo menos neste texto, apesar dos visíveis avanços nesse aspecto ditados pelos programas sociais dos três últimos governos.

Vivemos o que o cientista social francês Loic Wacquant chamou de “capitalismo de pilhagem”, no qual “cada vez mais pessoas são empurradas para fora do setor de atividade, para fora do emprego precário. Torna-se uma espécie de população supérflua, mas que precisa viver. Então, desenvolve uma economia informal na rua”. No Brasil, uma das principais distorções – para muitos, inclusive eu, nosso “calcanhar de Aquiles” – está no campo da educação. As escolas públicas de primeiro e segundo grau, que deveriam ser modelares, pois significam a formação básica do futuro cidadão, são, salvo raras e honrosas exceções, calamitosas. Já as universidades do Estado constituem-se num primor de qualidade, em termos de Terceiro Mundo, mas são freqüentadas, quase que exclusivamente, por quem pode pagar.

Em vários países, incluindo nesse rol maldito sociedades ricas e desenvolvidas, políticas desastrosas, para não dizer criminosas, e modelos econômicos perversos fazem com que a base da pirâmide social, a dos massacrados, dos excluídos da cidadania, dos deserdados da sorte, dos humilhados e ofendidos, cresça desmesuradamente. No outro extremo, o topo, afina-se cada vez mais.

No nosso caso – e especificamente no que se refere à Educação – o Estado brasileiro investe, em média, quatro vezes mais na instrução de um jovem de família rica do que na de um adolescente de origem modesta. Para se tornar um “self-made man” no Brasil, a pessoa precisa ser um fenômeno.

Os obstáculos que se interpõem em seu caminho são de tal sorte, que o jovem pobre já parte para a vida com seu destino praticamente traçado: a miséria compulsória. E ainda há quem negue que tenhamos estratificação social no Brasil!

Como explicar isso para um moço (ou uma moça) cheio de ideal, quando se desencanta, de cara, na procura do seu primeiro emprego? O País precisa começar a mudar já por aí (mas, óbvio, não só por aí). Este é um problema que os estadistas e, em especial, os cientistas políticos precisam resolver, sob pena de o homem, em médio prazo, perder seu verniz civilizatório e retroagir à barbárie. E o escritor, inclusive o de ficção, aquele talentoso e hábil que se deve designar sempre com “E” maiúsculo,  pode (e deve) dar imensa parcela de contribuição com seus enredos, cenários e personagens, fazendo uma crítica social sem sectarismo e nem dogmatismo, com textos leves que não descambem para o panfletário. Quem sabe, assim, se consiga deter o atual “capitalismo de pilhagem” que tende a levar a humanidade, inexoravelmente, para o abismo sem fundo e sem volta do caos.


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