Capitalismo
de pilhagem
Pedro J.
Bondaczuk
Os
chamados “temas sociais” são rica e inesgotável fonte temática para escritores
atentos, observadores e criativos, na elaboração de seus enredos. Refiro-me,
especificamente, aos ficcionistas. Dá para fazer uma ficção interessante e que
prenda a atenção do leitor e, simultaneamente, útil e proveitosa, do ponto de
vista social? Claro que dá! Se o literato tiver talento – e se não tiver, o
recomendável é que busque outra atividade que não a literatura – poderá denunciar
as mazelas e contradições, de regimes, governos e ideologias, sem recorrer a um
rançoso dogmatismo. É a ficção posta a serviço da realidade, conscientizando as
pessoas para o que está errado, distorcido, equivocado, induzindo-as a tentar
mudar o que deva ser mudado.
Posso
citar centenas de escritores, notadamente romancistas (mas não só eles), que
pintaram (pintam), posto que com
palavras, quadros sombrios de misérias, injustiças e exploração do homem pelo
homem, sem que precisassem (e nem precisem) ser panfletários ou dogmáticos.
Expuseram (e muitos expõem) tais mazelas com naturalidade, pela boca de
personagens e/ou, principalmente por suas ações, conferindo às suas denúncias
não só verossimilhança, mas credibilidade. Foram os casos no passado, por
exemplo, dos romances de Charles Dickens, expondo as vísceras sociais, de
miséria e exploração humana, de uma Londres que a maioria ignorava ou (o que é
mais provável) fingia ignorar; dos de Fedor Dostoievski, mostrando uma Rússia
czarista em que havia mal disfarçada escravidão (e branca) ou dos de Victor
Hugo, notadamente em “Os miseráveis” e “O corcunda de Notre Dame”, entre tantos
e tantos e tantos outros.
Os
conceitos óbvios são, não se sabe por que, os mais difíceis de as pessoas
assimilarem, em especial quando se trata de tema econômico. Exemplo disso é a
constatação do escritor E. Schumacher, quando afirma que “a economia como
conteúdo de vida é uma doença mortal, porque o crescimento infinito não se
ajusta a um mundo finito”.
Em
resumo, cada vez mais o homem precisa achar uma atividade que lhe permita obter
o sustento para si e para a família. As riquezas mundiais concentram-se,
crescentemente, em menos mãos. Pode-se dizer, hoje, que metade da humanidade
sobrevive em condições cada vez piores, parte considerável da qual na linha
geralmente aceita como abaixo da pobreza, que é a miséria.
Há
pouco tempo julgava-se que miseráveis existissem somente no chamado Terceiro
Mundo. Ou que fosse o lado perverso do capitalismo. A desagregação da União
Soviética e a adesão da China à economia de mercado mostram que o comunismo
(não o da utopia, o da teoria, mas o da prática) estava longe, muito distante
de criar a sonhada sociedade igualitária, sem classes, onde tudo seria dividido
por igual.
O
caso chinês é o mais expressivo. Enquanto os moradores das grandes cidades,
como Pequim e Xangai, passaram a conhecer a prosperidade e a ter recursos para
investir no supérfluo, hordas enormes de camponeses vegetam nos limites da
resistência, assoladas pela fome, pelas doenças e pela ignorância que se torna
endêmica. A alternativa, porém, não é este capitalismo predatório, de
espoliação e de pilhagem, que aí está.
A
poderosa Europa Ocidental, os Estados Unidos e o Japão (em menor proporção)
também têm seus mendigos, seus desabrigados, seus “homeless” (sem-teto), que
certamente aumentaram muito em decorrência da recente crise econômica que ainda
assola essas sociedades opulentas. Na França, por exemplo, o Abade Pierre
chegou a renovar, ainda em 1994, a campanha que fez no pós-guerra em favor dos
miseráveis. E isso antes que “estourasse” a tal “bolha imobiliária” que
deflagrou a atual crise no âmbito dos países membros da Comunidade Econômica
Europeia. Nos Estados Unidos, os miseráveis já passam dos 40 milhões. No Brasil,
nem é bom tornar a falar, pelo menos neste texto, apesar dos visíveis avanços
nesse aspecto ditados pelos programas sociais dos três últimos governos.
Vivemos
o que o cientista social francês Loic Wacquant chamou de “capitalismo de
pilhagem”, no qual “cada vez mais pessoas são empurradas para fora do setor de
atividade, para fora do emprego precário. Torna-se uma espécie de população
supérflua, mas que precisa viver. Então, desenvolve uma economia informal na
rua”. No Brasil, uma das principais distorções – para muitos, inclusive eu,
nosso “calcanhar de Aquiles” – está no campo da educação. As escolas públicas
de primeiro e segundo grau, que deveriam ser modelares, pois significam a
formação básica do futuro cidadão, são, salvo raras e honrosas exceções, calamitosas.
Já as universidades do Estado constituem-se num primor de qualidade, em termos
de Terceiro Mundo, mas são freqüentadas, quase que exclusivamente, por quem
pode pagar.
Em
vários países, incluindo nesse rol maldito sociedades ricas e desenvolvidas,
políticas desastrosas, para não dizer criminosas, e modelos econômicos
perversos fazem com que a base da pirâmide social, a dos massacrados, dos
excluídos da cidadania, dos deserdados da sorte, dos humilhados e ofendidos,
cresça desmesuradamente. No outro extremo, o topo, afina-se cada vez mais.
No
nosso caso – e especificamente no que se refere à Educação – o Estado
brasileiro investe, em média, quatro vezes mais na instrução de um jovem de
família rica do que na de um adolescente de origem modesta. Para se tornar um
“self-made man” no Brasil, a pessoa precisa ser um fenômeno.
Os
obstáculos que se interpõem em seu caminho são de tal sorte, que o jovem pobre
já parte para a vida com seu destino praticamente traçado: a miséria
compulsória. E ainda há quem negue que tenhamos estratificação social no
Brasil!
Como
explicar isso para um moço (ou uma moça) cheio de ideal, quando se desencanta,
de cara, na procura do seu primeiro emprego? O País precisa começar a mudar já
por aí (mas, óbvio, não só por aí). Este é um problema que os estadistas e, em
especial, os cientistas políticos precisam resolver, sob pena de o homem, em
médio prazo, perder seu verniz civilizatório e retroagir à barbárie. E o
escritor, inclusive o de ficção, aquele talentoso e hábil que se deve designar
sempre com “E” maiúsculo, pode (e deve)
dar imensa parcela de contribuição com seus enredos, cenários e personagens,
fazendo uma crítica social sem sectarismo e nem dogmatismo, com textos leves
que não descambem para o panfletário. Quem sabe, assim, se consiga deter o
atual “capitalismo de pilhagem” que tende a levar a humanidade,
inexoravelmente, para o abismo sem fundo e sem volta do caos.
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