Lições de Flaubert
Pedro
J. Bondaczuk
A releitura do romance
“Madame Bovary”, de Gustave Flaubert – clássico da literatura mundial –
suscitou-me uma série de reflexões que não fiz quando da primeira leitura.
Ocorre que naquela oportunidade, há cinqüenta anos, eu não tinha maturidade
suficiente, que se obtém, apenas, com longa vivência, que nos confere a
desejável experiência. Não se pode negar que algumas pessoas não amadurecem
nunca, mas suponho (embora não tenha certeza) que este não seja o meu caso.
Entre os princípios,
sobretudo morais, que a releitura do livro de Flaubert me suscitou reflexão,
três se destacam: fidelidade (e não somente a conjugal, embora esta seja o foco
do referido romance), dever e paixão. Cada um desses tópicos, dada sua
abrangência e profundidade, pode, tranquilamente, inspirar não apenas um único
texto, ou cinco, dez ou cem e vai por aí afora, mas, sem nenhum exagero,
diversos tratados e ainda assim não se esgotam, por causa dos inúmeros
aspectos, particularidades e sutilezas que os envolvem. Refletir a propósito,
pois, é bastante útil (diria necessário) e, sobretudo, saudável.
Sobre o dever, Flaubert
coloca as seguintes palavras na boca do personagem Rodolphe, quando este
assediava Emma Bovary, a quem viria a desencaminhar, a tornando sua amante,
antes que essa largasse o marido e assumisse uma vida de desregramento e
dissolução: “O dever! O dever! Caramba! O dever é sentir aquilo que é grande,
amar o que é belo e não aceitar todas as convenções da sociedade, com as
ignomínias que ela nos impõe”. É certo isso? É e não é. Depende das
circunstâncias. Antes de nos sentirmos obrigados a fazer ou a deixar de fazer
algo, temos que estar convictos da sua correção e excelência. Só assim nos
sentiremos obrigados a cumprir essa obrigação. As que são impostas por
terceiros, e de que intimamente
discordemos, quando não repudiemos, até subconscientemente, deixaremos
de atender. Intimamente, não nos sentiremos comprometidos com ela. Não
consideramos, pois, que se trate de “dever”.
Quanto à questão da
fidelidade, a ética nos impõe que respeitemos às últimas conseqüências os
compromissos que assumirmos, quer em relação a uma pessoa, quer a uma entidade,
causa, ideologia etc. Antes de nos comprometermos, todavia, temos que ter
certeza que se trate da lídima expressão da nossa crença e da nossa vontade. Se
tivermos, automaticamente passaremos a considerar seu cumprimento um dever
sagrado. No caso da infidelidade conjugal, quem trai o parceiro ou a parceira,
embora jure por todas as juras que ame a outra parte, evidentemente não ama.
Pode ser, até, que sinceramente ache isso. A partir do instante, porém, em que
assumiu compromisso com a amada (ou amado, no caso das mulheres), assumiu
tacitamente “o dever” da fidelidade.
E não pode rompê-lo,
caso conclua que se equivocou e que intimamente não se sinta mais obrigado a
cumprir o compromisso assumido? Pode. Mas “antes” de partir para outro
relacionamento, ou de aderir a outra causa se for o caso (e nunca “depois” do
fato consumado), tem que esclarecer a outra parte, se entender com ela e só
então partir para outro vínculo. Tem, no
meu entender, que se “desobrigar” do dever que assumiu e, se possível, da forma
mais respeitosa e menos conflituosa possível. Não é, óbvio, o que acontece.
Quem ama de fato, quem
tem convicção desse amor e é correspondido na mesma medida, não trai. Não tem
por que trair. Para essa pessoa, não há nenhuma outra no mundo que satisfaça
suas expectativas, anseios e necessidades afetivas como aquela que é
genuinamente amada. Caso haja a mínima “tentação” isso ocorrerá porque não
havia amor recíproco ou de uma das partes. Esse sentimento, no meu entender, é
absoluto. Não comporta meias medidas. Ou é íntegro e, portanto, existe, ou é
outra coisa qualquer – simpatia, amizade, atração sexual, ambição patrimonial
ou tantos outros interesses que nada têm a ver com afeto – menos amor.
Nestes casos entendo
que as partes devam se entender e, se possível, chegar ao consenso de que a
separação é o caminho mais adequado, lógico, justo e até inteligente. Há
milhões de casamentos mundo afora construídos sobre bases movediças, à espera somente
de algum incidente, não raro tolo e trivial, para ruir. A maior parte deles se
mantém assim a vida toda, com descontentamentos, frustrações, mágoas e
recriminações recíprocas e, claro, traições ou pelo menos tentações de trair.
Os lares erguidos sobre esses alicerces tão sediços, pelo menos alguns, são
verdadeiras “sucursais” do inferno.
Quanto às paixões,
Flaubert coloca esta declaração na boca do mesmo personagem, Rodolphe, em seu
assédio sexual sobre Emma Bovary (que no íntimo estava doida para ser seduzida
e romper seu vínculo conjugal com o marido, que não satisfazia suas tantas e
vagas fantasias): “Por que se há de clamar contra as paixões? Não são elas a
única coisa bela que existe na Terra, a fonte do heroísmo, do entusiasmo, da
poesia, da música, das artes, enfim, de tudo?”.Claro que ele se referia às
paixões positivas, às construtivas, às necessárias e até indispensáveis para a
produção de obras primas que sobrevivam ao tempo e ao esquecimento.
Ocorre que,
maliciosamente, deixou no ar a sugestão de que sua atração sexual por uma
mulher casada, à qual pretendia desencaminhar (e que desencaminhou) se incluía
no rol dessas paixões que movem os heróis, os artistas, os construtores, os
gênios e os santos a maiúsculas realizações. A sua, por Emma, todavia, era a
viciosa, a condenável, a enganadora e falsa. Voltarei oportunamente ao assunto.
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