Cancro
a ser extirpado
Pedro J. Bondaczuk
O Haiti, há muito tempo, tem sido sinônimo de
tragédia. Não somente em virtude da extrema pobreza do seu povo, mas, e
principalmente, por causa das seqüelas que costumam acompanhar esse estado de
indigência, como a violência, o desemprego, o analfabetismo, as doenças de toda
a sorte e a existência desse cancro horroroso em seu corpo social, que é a
antiga polícia secreta do clã Duvallier, os temidos Tontons Macoutes.
Neste Domingo, esse grupo (que só sabe matar e nada
mais) aprontou outra das suas. Promoveu uma chacina dantesca em Port-au-Prince
e em outras cidades do país, levando o governo provisório a suspender as
eleições presidenciais, as primeiras livres dos últimos 30 anos, gerando mais
tensões e incertezas.
O clima passional que acompanhou toda a campanha já
dava indicações de que algo desse tipo iria ocorrer. Faltou, portanto,
organização aos militares para realizarem esse pleito com segurança e com
lisura. Alguns observadores interpretam a anulação da consulta às urnas como
uma espécie de golpe branco das Forças Armadas, que não estariam dispostas a
entregar o poder aos civis.
O homem-forte do Haiti, tenente-general Henry
Namphy, assegura que não. Afinal, ele é o fiador da transição democrática. O
processo de reinstitucionalização haitiano foi todo conduzido por ele, desde a
convocação da Assembléia Constituinte, até às canceladas eleições de anteontem,
que deveriam ser a culminância de tudo. O oficial assegura que o novo
presidente, eleito pelo voto direto, vai ser empossado de qualquer jeito em
fevereiro próximo, impreterivelmente, como ele havia prometido em 1985.
Só que o clima agora ficou envenenado após os
tumultos e a violência de anteontem. O Haiti, entre outras coisas, tem um
desnível enorme, um abismo intransponível, entre uma minoria mulata, que não
passa de 5% e detém virtualmente a totalidade da escassa riqueza nacional (o
Produto Nacional Bruto do país é de pouco mais de US$ 1,2 bilhão, ou seja, o
equivalente ao saldo da balança comercial brasileira de um único mês) e o
resto.
Aos demais 95%, todos negros, só restam a desolação
e a indigência. A falta de moradia, a ausência de empregos, a inexistência de
escolas (85% da população é analfabeta), a carência de assistência médica
(proporcionalmente, o país tem a maior incidência de Aids do mundo por número
de habitantes) e principalmente um futuro sem nenhuma perspectiva, a não ser a
morte por fome, por alguma epidemia ou mediante a violência (política ou não).
No entanto, os haitianos precisam se convencer
(como? É difícil de se saber!) de que apenas a democracia os pode salvar da
falência nacional, financeira, moral e espiritual. E a prática democrática não
passa, em circunstância alguma, por atos selvagens de vandalismo, como os de
anteontem, qualquer que seja o pretexto. Antes das eleições, portanto, é
indispensável que esse câncer no tecido social do país (os Tontons Macoutes)
seja definitivamente extirpado, para que o organismo todo não venha a perecer.
(Artigo publicado na
página 14, Internacional, do Correio Popular, em 1º de dezembro de 1987).
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