Tuesday, October 08, 2013

Folclore e literatura

Pedro J. Bondaczuk

O folclore e a literatura estão diretamente vinculados, embora nem sempre tenha sido assim. Por muito tempo os escritores não deram maior importância a essas espontâneas manifestações populares – caracterizadas por mitos, lendas, danças, superstições, cânticos etc. – cultivadas por gerações e transmitidas, de uma à outra, intactas, tal como foram originalmente concebidas (não se sabe quando,  como e nem por quem). Entendiam que eram usos e costumes populares tão corriqueiros e ingênuos, tão rústicos e primitivos, que não eram coisas para serem tratadas por intelectuais. Reputo essa atitude como puro preconceito.

Antes de tudo, como manda o figurino do bom texto, é oportuno recorrer-se a definições. Vamos, pois, a elas, com as devidas contextualizações. O termo “folclore” é um abrasileiramento da expressão inglesa “folk lore”, formada por duas palavras distintas – “folk”, que significa “povo” e “lore”, sabedoria” – cunhada para caracterizar, genericamente, o que se entendia como  “sabedoria popular”. Foi usada pela primeira vez em 1846 pelo arqueólogo inglês William John Thoms (que assinava seus livros e artigos com o pseudônimo de Ambrose Merton). O pesquisador utilizou-a em uma carta que remeteu à revista “The Atheneaum” de Londres e não tardou para ela ser popularizada mundo afora. Até então, essas tradicionais manifestações artístico-culturais dos povos vinham sendo chamadas, simplesmente, de “antiguidades populares”.

O folclore começou a ganhar relevância para os estudiosos somente no fim do século XVIII e, notadamente, no início do século XIX,  através das pesquisas dos irmãos Wilhelm e Jacob Grimm e do filósofo e escritor Johann Gotthfried von Herder da poesia informal alemã, a composta por pessoas do povo, por gente simples e pouco instruída, como camponeses, artesãos e trabalhadores braçais, entre outros. Os pesquisadores notaram que essas composições diferiam muito das dos poetas eruditos e não apenas na forma, mas, sobretudo, nos temas abordados. Foi quando escritores da Escola Romântica, principalmente ficcionistas, se interessaram pelo folclore e incorporaram-no aos seus enredos.

A globalização, ditada pelos avanços dos meios de transporte e, principalmente, dos veículos de comunicação – que vem transformando, de fato, o Planeta em uma “aldeia global” – não só difunde as inúmeras manifestações folclóricas dos vários povos, mas também dita profundas mudanças nelas, promovidas por quem as recebe e absorve. Há quem veja nisso riscos delas desaparecerem ou se descaracterizarem. Os “puristas” opõem-se, por exemplo, à crescente utilização de recursos da modernidade – como televisão, rádio, gravações e internet – nas expressões folclóricas, argumentando, não sem uma certa razão, que estas são, sobretudo, tradições que, se ou quando modificadas, perdem a alma e a concepção original.

Afirmam, por exemplo, que depois que a TV passou a se interessar pela literatura de cordel, essa perdeu a autenticidade. Apontam como prova disso o fato dos cordelistas estarem abandonando, paulatinamente, lendas e crendices a que recorriam antigamente e perpetuavam em suas produções, trocando esses temas pelos da cultura nitidamente urbana. Entendo que, neste caso, os que criticam esse procedimento descambam para o exagero. Considero o folclore algo vivo e, portanto, em permanente mutação, como é, por exemplo, a língua de um povo. A incorporação de novos temas não significa, necessariamente, o abandono dos tradicionais. Vejo isso, na verdade, como acréscimo ao acervo de manifestações folclóricas de um povo (no caso, o nosso).

É certo que o folclore “se alimenta” basicamente de tradições. Todavia, os usos, costumes, superstições, crendices, lendas, mitos etc. das grandes cidades de hoje (e estas têm, creiam-me, os seus próprios e em profusão), tidos como manifestações de “modernidade”, em um futuro talvez não muito distante – coisa de vinte, vinte e cinco, cinqüenta ou cem anos – terão a mesma “pátina” da História que as peripécias, por exemplo, da “Nau Catarineta” ou dos confrontos entre mouros e cristãos do folclore de hoje.

Em favor dessa tese pode-se citar o mais renomado folclorista brasileiro, o historiador, antropólogo e jornalista potiguar Luís da Câmara Cascudo (falecido em 30 de julho de 1986), que, em entrevista à revista Veja, publicada em 19 de abril de 1972, afirmou: “Toda a produção de cultura popular está sendo aproveitada agora, a partir da segunda metade do século XX. Quando eu comecei a trabalhar, acontecia o contrário. Chegaram a pedir a minha demissão de professor catedrático de História porque eu estava desmoralizando o Ateneu Norte-riograndense ao estudar o bumba-meu-boi e contar histórias de lobisomem. Isso era indigno de um professor de História. Agora a literatura de cordel e o folclore interessam aos professores universitários, cineastas, poetas. Não há nada imóvel que não acabe se fossilizando e desaparecendo. Defendo, portanto, essa forma de sobrevivência, que nada mais é do que uma volta das fontes primárias da forma”.

E mestre Cascudo arrematou, dizendo: “Sou defensor da tradição e não da imobilidade da tradição. No sertão do meu tempo, o primeiro gramofone que apareceu foi levado por minha mãe. Mais de cem vaqueiros cercaram, uma noite, o gramofone, para ouvir discos da Casa Edison. Alguns queriam descobrir o cantor. Hoje o homem do sertão troca as pilhas do seu rádio sem nenhum mistério”. Eu aduziria que navega na internet, talvez tenha seu tablet e certamente dispõe de celular. Mas isso não quer dizer que, necessariamente, tenha aberto mão de suas tradições. Talvez, porém, as tenha adaptado no que, se o fez, agiu muito bem.


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