Folclore e literatura
Pedro
J. Bondaczuk
O folclore e a
literatura estão diretamente vinculados, embora nem sempre tenha sido assim.
Por muito tempo os escritores não deram maior importância a essas espontâneas
manifestações populares – caracterizadas por mitos, lendas, danças,
superstições, cânticos etc. – cultivadas por gerações e transmitidas, de uma à
outra, intactas, tal como foram originalmente concebidas (não se sabe
quando, como e nem por quem). Entendiam
que eram usos e costumes populares tão corriqueiros e ingênuos, tão rústicos e
primitivos, que não eram coisas para serem tratadas por intelectuais. Reputo
essa atitude como puro preconceito.
Antes de tudo, como
manda o figurino do bom texto, é oportuno recorrer-se a definições. Vamos,
pois, a elas, com as devidas contextualizações. O termo “folclore” é um
abrasileiramento da expressão inglesa “folk lore”, formada por duas palavras
distintas – “folk”, que significa “povo” e “lore”, sabedoria” – cunhada para
caracterizar, genericamente, o que se entendia como “sabedoria popular”. Foi usada pela primeira
vez em 1846 pelo arqueólogo inglês William John Thoms (que assinava seus livros
e artigos com o pseudônimo de Ambrose Merton). O pesquisador utilizou-a em uma
carta que remeteu à revista “The Atheneaum” de Londres e não tardou para ela
ser popularizada mundo afora. Até então, essas tradicionais manifestações
artístico-culturais dos povos vinham sendo chamadas, simplesmente, de
“antiguidades populares”.
O folclore começou a
ganhar relevância para os estudiosos somente no fim do século XVIII e,
notadamente, no início do século XIX,
através das pesquisas dos irmãos Wilhelm e Jacob Grimm e do filósofo e
escritor Johann Gotthfried von Herder da poesia informal alemã, a composta por
pessoas do povo, por gente simples e pouco instruída, como camponeses, artesãos
e trabalhadores braçais, entre outros. Os pesquisadores notaram que essas
composições diferiam muito das dos poetas eruditos e não apenas na forma, mas,
sobretudo, nos temas abordados. Foi quando escritores da Escola Romântica,
principalmente ficcionistas, se interessaram pelo folclore e incorporaram-no
aos seus enredos.
A globalização, ditada
pelos avanços dos meios de transporte e, principalmente, dos veículos de
comunicação – que vem transformando, de fato, o Planeta em uma “aldeia global”
– não só difunde as inúmeras manifestações folclóricas dos vários povos, mas
também dita profundas mudanças nelas, promovidas por quem as recebe e absorve.
Há quem veja nisso riscos delas desaparecerem ou se descaracterizarem. Os
“puristas” opõem-se, por exemplo, à crescente utilização de recursos da
modernidade – como televisão, rádio, gravações e internet – nas expressões
folclóricas, argumentando, não sem uma certa razão, que estas são, sobretudo,
tradições que, se ou quando modificadas, perdem a alma e a concepção original.
Afirmam, por exemplo,
que depois que a TV passou a se interessar pela literatura de cordel, essa
perdeu a autenticidade. Apontam como prova disso o fato dos cordelistas estarem
abandonando, paulatinamente, lendas e crendices a que recorriam antigamente e
perpetuavam em suas produções, trocando esses temas pelos da cultura
nitidamente urbana. Entendo que, neste caso, os que criticam esse procedimento
descambam para o exagero. Considero o folclore algo vivo e, portanto, em
permanente mutação, como é, por exemplo, a língua de um povo. A incorporação de
novos temas não significa, necessariamente, o abandono dos tradicionais. Vejo
isso, na verdade, como acréscimo ao acervo de manifestações folclóricas de um
povo (no caso, o nosso).
É certo que o folclore
“se alimenta” basicamente de tradições. Todavia, os usos, costumes,
superstições, crendices, lendas, mitos etc. das grandes cidades de hoje (e
estas têm, creiam-me, os seus próprios e em profusão), tidos como manifestações
de “modernidade”, em um futuro talvez não muito distante – coisa de vinte,
vinte e cinco, cinqüenta ou cem anos – terão a mesma “pátina” da História que
as peripécias, por exemplo, da “Nau Catarineta” ou dos confrontos entre mouros
e cristãos do folclore de hoje.
Em favor dessa tese
pode-se citar o mais renomado folclorista brasileiro, o historiador,
antropólogo e jornalista potiguar Luís da Câmara Cascudo (falecido em 30 de
julho de 1986), que, em entrevista à revista Veja, publicada em 19 de abril de
1972, afirmou: “Toda a produção de cultura popular está sendo aproveitada
agora, a partir da segunda metade do século XX. Quando eu comecei a trabalhar,
acontecia o contrário. Chegaram a pedir a minha demissão de professor catedrático
de História porque eu estava desmoralizando o Ateneu Norte-riograndense ao
estudar o bumba-meu-boi e contar histórias de lobisomem. Isso era indigno de um
professor de História. Agora a literatura de cordel e o folclore interessam aos
professores universitários, cineastas, poetas. Não há nada imóvel que não acabe
se fossilizando e desaparecendo. Defendo, portanto, essa forma de
sobrevivência, que nada mais é do que uma volta das fontes primárias da forma”.
E mestre Cascudo
arrematou, dizendo: “Sou defensor da tradição e não da imobilidade da tradição.
No sertão do meu tempo, o primeiro gramofone que apareceu foi levado por minha
mãe. Mais de cem vaqueiros cercaram, uma noite, o gramofone, para ouvir discos
da Casa Edison. Alguns queriam descobrir o cantor. Hoje o homem do sertão troca
as pilhas do seu rádio sem nenhum mistério”. Eu aduziria que navega na
internet, talvez tenha seu tablet e certamente dispõe de celular. Mas isso não
quer dizer que, necessariamente, tenha aberto mão de suas tradições. Talvez,
porém, as tenha adaptado no que, se o fez, agiu muito bem.
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