Thursday, October 31, 2013

Escritora para quem idade não era problema

Pedro J. Bondaczuk

A escritora Tatiana Belinky – que faleceu, em São Paulo, em 15 de junho de 2013, aos 94 anos de idade – teve inestimável influência em minha vida e na paixão que tenho pela Literatura. Considero-a exemplar em todos os sentidos. Foi, principalmente,  exemplo vivo de algo que não me canso de apregoar: que devemos ser úteis e produtivos até nosso último sopro de vida, indiferentes à passagem do tempo. E ela foi. Tanto que em 2010, aos 91 anos, quando a maioria das pessoas (diria, a totalidade), das raras que atingem essa idade, abrem mão de viver, ela se mantinha lúcida e produtiva, escrevendo crônicas e  memórias e, de quebra, foi eleita para integrar a Academia Paulista de Letras, ocupando a cadeira de número 25. Que magnífico exemplo de vida!

Entendo que esse reconhecimento da elite literária do Estado deveria ter vindo antes, muito antes, várias décadas antes. Mas... antes tarde do que nunca. Vou mais longe. Entendo que por sua obra, na maior parte voltada à faixa infanto-juvenil, mas não só a ela, credenciou-a, com folga, a ser membro da casa de Machado de Assis, ou seja, da Academia Brasileira de Letras. Isso nunca aconteceu. Pior para a ABL. Como não guindar à instituição máxima das letras nacionais uma escritora com mais de 250 livros? Não entendo. Ainda mais levando em conta que muitos dos seus integrantes têm obras, para dizer o mínimo, “contestáveis”.

Além de ter lido, na minha infância, uma infinidade de histórias que ela escreveu, acompanhei, embevecido, a primeira versão televisiva do Sítio do Pica-pau amarelo, cuja adaptação dos livros de Monteiro Lobato (outro dos mitos inesquecíveis da minha infância) coube a Tatiana Belinky. Parece coisa fácil para quem nunca teve que enfrentar desafio do tipo. Experimentem, todavia, adaptar qualquer texto literário para os palcos e as telas. É tarefa de gente grande, diria de “gigantes”, que só quem tem pleno conhecimento de causa consegue fazer. E ela conseguiu, com rara maestria. E por muito tempo. O Sítio do Pica-pau amarelo permaneceu na grade de programação da extinta TV Tupi por catorze anos (de 1952 a 1966)!!!

Convém recordar que a televisão, na época, ainda em preto e branco,  era uma atividade artesanal, com escassíssimos recursos técnicos. Os que atuavam nesse veículo, hoje popularizadíssimo, sequer sonhavam com as facilidades tecnológicas que existem hoje. Gravações? Nem pensar! Tudo era apresentado ao vivo e não comportava erros de quaisquer espécies. A opção era: acertar ou acertar. Tudo era feito na raça, na base do talento puro. As falas dos atores tinham que ser irrepreensíveis, de sorte que esses não tivessem dificuldade alguma em decorá-las e transmiti-las. E em todos esses anos que acompanhei atento o Sítio do Pica-pau amarelo, na TV Tupi, não me lembro de uma única falha, dos atores, câmeras, diretores e, principalmente, do que os personagens faziam ou falavam.

Tatiana tinha, nessa magnífica empreitada, a parceria (diria, a cumplicidade), do médico e educador Júlio Gouveia, com o qual havia se casado em 1940. Antes de encarar o desafio na televisão, o casal já havia adquirido vasta experiência no assunto. Desde 1948, os dois já vinham fazendo adaptações, traduções e elaborando as próprias produções para o teatro, contratados pela Prefeitura de São Paulo. Foi o período de ouro das peças infantis na capital paulista. Milhares e milhares de crianças da minha faixa etária, hoje setentões, divertiram-se e aprenderam com as histórias do casal, notadamente de Tatiana Belinky.

Lembro-me que Júlio Gouveia encerrava, invariavelmente, o Sítio do Pica-pau amarelo com uma espécie de bordão. Ao final de cada capítulo, resumia o que seria apresentado no seguinte e concluía, para aguçar ainda mais nossa curiosidade infantil: “Mas esta é uma outra história que fica para uma outra vez”. Nunca me esqueci disso. Passadas décadas, essas palavras me vêm à memória e consigo até visualizar a figura desse apresentador, dizendo isso, com seu jeitão sério e compenetrado, tendo, atrás de si, a título de cenário, uma estante abarrotada de livros.

Mas não foi, óbvio, apenas como redatora para a televisão que Tatiana se destacou, embora, compreensivelmente, seja lembrada por meus contemporâneos principalmente (ou somente) por isso. Teve intensíssima atividade literária. Afinal, como destaquei, publicou mais de 250 livros. E embora sua “especialidade” fosse a literatura infantil, não escreveu somente histórias para crianças. De 2000 para cá, por exemplo, muitas de suas obras foram coletâneas de crônicas, saborosas e bem-humoradas, uma delícia para leitores de todas as idades que apreciem textos inteligentes e bem escritos.

Além da extinta TV Tupi, Tatiana trabalhou, também, na TV Cultura, com idêntico sucesso. A idade, para ela, nunca foi empecilho. Não deve ser para ninguém. Foi, ainda, presença constante nas páginas de três dos mais importantes jornais paulistas e brasileiros: “Folha de São Paulo”, “Jornal da Tarde” e “O Estado de São Paulo”, que abrilhantou com seus lúcidos e pertinentes artigos, deliciosas crônicas e, sobretudo (sua especialidade) crítica de literatura infantil. Seus livros mais conhecidos (pelo menos os que me lembro agora) são: “Limerique das coisas boas”, “Coral dos Bichos”, “Limeriques” e “O Grande Rabanete”. Claro que poderia mencionar por volta de uma centena de outras obras que escreveu, mas não o farei, até para testar sua capacidade de pesquisa, caríssimo leitor.

Antes que me perguntem o que significa a palavra “limerique”, utilizada no título de alguns livros de Tatiana Belinky, esclareço que se trata de um tipo de poema curto, geralmente sobre coisas ou situações engraçadas, originado da cidade de Limerick, no Eire (Irlanda do Sul), compostos em cinco versos. E ela especializou-se nesse tipo de poesia, que compunha com graça, originalidade e muito senso de humor. Não tenho nenhum problema em confessar (pelo contrário, faço-o com orgulho) que essa escritora nascida na cidade russa de Petrogrado foi uma das principais influências na minha literatura e, principalmente, em minha vida.


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