Wednesday, October 23, 2013

Crise de autoridade


Pedro J. Bondaczuk


A situação no Líbano, nos últimos doze dias, deteriorou-se, visivelmente, alcançando graus de tensão e de insegurança insuportáveis, inéditos até nos mais de dez anos de guerra civil que destroçaram aquele país. Pode parecer acaciana uma afirmação dessa natureza, mas não é.

Durante todo o tempo em que esse conflito já dura – mesmo nos momentos mais difíceis de 1982, quando a tentativa de Israel de expulsar a OLP de Beirute quase redunda na destruição completa da capital libanesa –, sempre existiu um princípio de autoridade no Líbano. Tanto o presidente cristão, quanto o primeiro-ministro muçulmano, eram respeitados, ou pelo menos ouvidos.

Agora, isso já não se verifica mais. O Líbano vive, além de uma profunda divisão sectária, a mais séria crise de autoridade de sua história. A palavra do presidente Amin Gemayel é ignorada até por seus próprios correligionários, o mesmo acontecendo com a do primeiro-ministro, Rachid Karami, junto à sua comunidade muçulmana, fato que, inclusive, o levou a apresentar um pedido de renúncia, no dia 10 de março, posteriormente reconsiderado, após intervenção pessoal do presidente sírio Hafez Assad.

Aliás, essa contínua ingerência de Damasco nos negócios internos libaneses é um dos fulcros do agravamento da crise. A divisão ocorrida na outrora monolítica Falange Cristã, criação do falecido Pierre Gemayel, deveu-se exatamente à oposição do grupo liderado por Samir Geagea à quase subserviência do Poder Executivo às “ordens” ditadas pela Síria.

Quase todas as decisões importantes, referentes à gestão do Estado, são tomadas apenas após a indefectível consulta a Hafez Assad, quando não impostas, posto que sutilmente, por Damasco. Pensava-se que a retirada israelense do Sul do Líbano, que deverá se completar, segundo todas as previsões, nas próximas três semanas, viria a se constituir em um fator de estabilidade. Que as diversas facções rivais encarassem o fato como uma espécie de vitória e pudessem, ao menos, voltar a se sentar ao redor de uma mesma mesa apenas para trocar idéias e procurar a conciliação.

Ao invés disso, o que vem ocorrendo? Autênticos massacres de cristãos, que em 1978 haviam proclamado, sob as ordens do falecido major Saad Hadad, a região Sul do país como um Estado livre, aliado de Israel.
Os xiitas nunca perdoaram essa atitude, que consideraram subserviente. E agora a milícia Amal está indo à forra, ocupando, com o auxílio de outros grupos menores, as aldeias cristãs sul-libanesas.

Beirute, que desde julho do ano passado estava reunificada e sob o controle do Exército do Líbano, voltou a se conflagrar. Combates ferozes e selvagens, onde, como sempre, o maior sacrificado é o homem comum, do povo, desinteressado de política e desencantado com o estado que os políticos deixaram o seu país, voltaram a opor cristãos e muçulmanos.

Os apelos de Amin Gemayel aos seus ex-comandantes, caem no vazio. As exortações de Rashid Karami são solenemente ignoradas, mostrando que o Líbano se transformou num barco amotinado, onde a tripulação considera extinta a autoridade do comandante. Onde o piloto já não tem mais acesso ao leme. E cuja nau caminha, celeremente, de encontro a perigosos arrecifes, onde, fatalmente, acabará se despedaçando, caso alguma heróica ação de última hora não venha a ocorrer para a salvar.

(Artigo publicado na página 9, Internacional, do Correio Popular, em 11 de maio de 1985).


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