Quando se joga o futuro no
lixo
Pedro J. Bondaczuk
A Literatura – seja ela de ficção
ou não – tem o condão de identificar e de descrever, com precisão e
credibilidade, comportamentos usuais de maneira mais explícita e completa do
que qualquer estudioso da matéria, quer seja antropólogo, sociólogo, etólogo e vai por aí afora. O escritor, nesse
aspecto, leva vantagem até sobre o jornalista. Enquanto este tem por foco fatos
recentíssimos, e que acabem de ocorrer (notícias velhas não fazem parte de seu
metier), que tem o dever de reproduzir de maneira fidelíssima, sem acrescentar
e nem omitir detalhe algum, o literato, ao compor seus personagens e ao
elaborar seus enredos, não tem nenhum impeditivo do tipo. Tanto pode se valer
de ocorrências recentes, do mesmo dia em que engendra suas histórias, por
exemplo, quanto de passado remotíssimo. Nada e ninguém o impedem
Outra vantagem que leva é a de
poder juntar características de inúmeras pessoas numa só. E de somar várias
histórias que testemunhou, ouviu ou leu, pinçando de cada uma delas o que mais
lhe interesse ao compor seu enredo, acrescentando, até mesmo, coisas que nunca
aconteceram, mas que poderiam ter acontecido, se julgar necessário. Seu único
parâmetro, seu limite, que nem chega a ser obstáculo, é que o produto final
tenha verossimilhança. Se for fantasioso demais cairá em descrédito junto ao
leitor. Terá fracassado em escrever uma história interessante e proveitosa para
quem lê.
Tomemos como exemplo o tratamento
que se dá às crianças, não importa de que lugar ou de que tempo. Quando geramos
um filho, assumimos uma responsabilidade imensa, que é a de criá-lo, educá-lo,
transmitir-lhe conhecimentos básicos de sobrevivência, além de valores
essenciais para seu crescimento e desenvolvimento harmonioso e seu convívio sem
conflitos em sociedade. Só conseguiremos fazer isso, porém, com relativa
eficácia, se tivermos sido educados corretamente (nos padrões considerados como
tal pela sociedade, que não deixam de ser ambíguos, pois não há parâmetros
rigorosamente exatos nesse sentido). Ninguém transmite aos outros o que não
sabe.
O problema dos filhos, ao
contrário do que alguns (diria muitos) pensam, não está no seu sustento (ou
apenas nele). Mesmo que eles nasçam em famílias extremamente carentes, de uma maneira
ou de outra, sempre haverá um jeito de alimentá-los, vesti-los e protegê-los. É
como diz o ditado: “onde comem dois, comem três, quatro ou mais”. Se bem ou
mal, claro, são outros quinhentos. O “x” da questão, contudo, não é este. É
como educá-los. Nenhuma criança vem ao mundo com um manual de instruções, como
se fosse algum sofisticado robô de alta tecnologia, que funcione corretamente
se for manipulada como recomenda o fabricante. É preciso levar em conta seus
instintos, para direcioná-los adequadamente, estimulando e desenvolvendo os
bons e reprimindo os maus. Suas emoções contam, e muito, assim como seu
temperamento.
O ambiente em que as criarmos
pode ser determinante para o seu futuro. Pode, note bem, mas não
necessariamente. Se essas crianças forem criadas em um lar harmonioso e
equilibrado, onde impere o respeito e, sobretudo, o amor, a probabilidade maior
é que se tornem adultos responsáveis, sensíveis e preocupados com os direitos e
o bem estar do próximo. Não se trata, porém, de nenhuma certeza. Muitos
bandidos cruéis e sanguinários foram criados em lares que simulariam o paraíso,
mas desvirtuaram, por uma razão ou por outra.
A probabilidade, porém, é que
esse tipo de desvio não ocorra, embora, reitero, não seja nenhuma certeza.
Esta, a rigor, nunca existe. Mas se a criança for criada em ambientes de
agressividade, vício, desrespeito, irresponsabilidade e desídia, as chances de
se tornar marginal, sádica e perversa, são imensas, “quase” absolutas. Claro
que também não se trata, torno a insistir, de nenhuma certeza. Há casos e mais
casos de pessoas criadas em ambientes “podres”, como este, se tornarem adultos
equilibrados, úteis e exemplares, embora sejam raros.
Em minha avaliação pessoal, de
ávido e compulsivo leitor, o escritor que melhor tratou do assunto de crianças
abandonadas, órfãs, exploradas em todos os sentidos, maltratadas e agredidas,
foi o romancista inglês Charles Dickens. Há quem veja exagero em seus
personagens e enredos. Discordo. Se ele exagerou em algum ponto (e entendo que não
o fez) foi no sentido de tornar menos cruéis os ambientes em que os meninos e
meninas que retratou – certamente baseado em casos concretos, posto que não
específicos – foram criados. E de fazer com que as agruras, sofrimentos e
dramas que lhes atribuiu fossem menores do que seria de se esperar nas
circunstâncias que imaginou.
A criança abandonada tem sido, através dos anos, tema
preferido dos políticos em vésperas de eleições e de intelectuais que nem
sempre conhecem de perto esse drama. Mas de ação concreta para acabar com o
problema pouquíssima coisa tem sido feita. O que é realizado, em geral, acaba
sendo obra de uns poucos beneméritos, e por sua própria conta e risco. Às vezes
suas tentativas de resgate e regeneração funcionam. Outras tantas, não. É
impossível, por exemplo, apagar da memória de uma criança que passou toda a
infância sendo amedrontada, espancada, explorada (não raro sexualmente) e quase
sempre por parentes – pais, padrastos, tios, primos etc. – que deveriam
protegê-las e cuidar delas, todos esses dramas. Algumas, mesmo carregando pelo
resto da vida esses terríveis traumas, se tornam adultos exemplares. Outras (a
maioria?)... viram bandidos, feras insensíveis que pedimos aos céus que nunca
cruzem nossos caminhos.
Contingentes e mais contingentes
de crianças abandonadas, desnutridas, desesperançadas, que desde muito cedo têm
que conviver com a violência, o abuso sexual e a criminalidade, vão se
multiplicando pelas ruas das grandes cidades mundo afora. O que fazer com essas
pessoas desajustadas, e não por culpa própria, mas vítimas de pais
irresponsáveis, que jamais poderiam ou deveriam gerar quem quer que fosse?
Jogá-las “no lixo” como artefatos defeituosos? Mas são pessoas! Claro que a
sociedade tem o direito de se proteger contra os instintos criminosos das mais
perversas, como as que incendeiam pessoas apenas por não terem dinheiro
suficiente para ser roubado por elas ou praticam outras atrocidades, tão ou
mais hediondas que essa.
Entendo que devemos continuar
trabalhando para resgatar as que ainda julguemos resgatáveis e confiar no
resultado do trabalho, desde que tenhamos certeza que este é, além de contínuo
e ininterrupto, bem feito. Até porque, como disse o escritor Elias Canetti, “se
eu duvidasse, se eu tivesse realmente desistido da esperança, não poderia mais
viver”. Porquanto abrir mão dessas pessoas, das potencialmente recuperáveis,
equivaleria a jogar expressiva parcela de futuro da nossa espécie na lata de
lixo.
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