Pedro J. Bondaczuk
A ambição de todo artista – e no nosso caso, no da literatura, o escritor – é produzir uma obra marcante, uma única que seja, original, memorável, atemporal e, sobretudo, beirando à perfeição. Poucos conseguem. Diria: pouquíssimos. Peca-se, por vários motivos, em uma coisa ou outra, e, para a posteridade, não raro, o que fica não é a virtude do que foi produzido, a beleza, a inteligência, o bom gosto ou a transcendência, mas são seus eventuais defeitos, por mínimos que sejam (não raro, até, imperceptíveis). Daí a necessidade de concentração e de se atentar a detalhes que, se não observados, podem arruinar uma boa obra. Via de regra, arruínam mesmo.
Sou daqueles adeptos da excelência e do perfeccionismo. Mas sem exageros. Ou seja, sem fazer dessa busca de perfeição uma obsessão (e me perdoem a rima). Até virtude em excesso é defeito. No caso, é o da soberba. Nenhum artista, em sã consciência, sequer cogita, ao elaborar sua produção, que esta possa ser caricata, deformada, feia, eivada de defeitos. Seu empenho é o de fazê-la a mais perfeita possível. Às vezes consegue. Outras tantas, não. Ademais, nem todas as obras imperfeitas (dependendo da natureza e da extensão dessa imperfeição) são ruins, imprestáveis e, por isso, descartáveis. Reitero que devemos, sim, ser perfeccionistas, todavia sem fazer disso obsessão.
A esse propósito, penso como Gilberto Freyre. O eminente sociólogo e reputado intelectual pernambucano escreveu a respeito, no artigo “Henry Moore, escultor de Sussex”, publicado na coluna que assinava na revista “O Cruzeiro”, em 9 de outubro de 1965: “O requinte de perfeccionismo faz, de certas obras de arte clássica – de literatura, de escultura, de arquitetura, de pintura – maravilhas de artes prejudicadas pelo próprio excesso de perfeição. Pelo próprio exagero de maturidade. O que parece dar a obras que, sendo clássicas, conservam-se, como, em literatura, as inglesas, de Chaucer a Shakespeare e de Shakespeare aos Lawrence, um tanto românticas, é – penso eu – o seu não sei quê de incompleto, de imperfeito, de imaturo, até. Nisto, Rodin foi mais inglês do que francês. E Proust também”.
Há quem chegue ao exagero de nunca dar uma obra por acabada, insistindo em burilá-la, em retocá-la, em refazê-la até, vezes sem fim, a ponto de descaracterizar por completo sua concepção original. E não raro essa versão que tanto modificou era a excelente e com todas as chances de se consolidar e se consagrar. Esse é, pois, o caso clássico do perfeccionismo nocivo, posto que obsessivo. E, como tudo o que é exagerado... deixa de ser virtude para se transformar em algo negativo e ruim, diria, até, que doentio.
Pior ainda é quando o artista, “cutucado” pelos críticos (cuja função, óbvia, é a de criticar), mostra insegurança e imaturidade e tenta “explicar” o que fez. Trata-se de atitude, sobretudo, ingênua, e que só o faz perder tempo. A arte, a boa arte, é a que se explica por si só. Se o autor não consegue isso, melhor será “abortar” a produção (se, de fato, tiver os defeitos que os críticos lhe apontarem. Às vezes não tem). Houve tempo, não muito remoto, em que essas “explicações” viraram mania, uma espécie de regra informal. Era uma chatice sem tamanho! Hoje em dia, já não vejo tanto isso. Mas ainda há ingênuos que procedem dessa maneira.
Décio Pignatari escreveu o seguinte, a propósito: “Os artistas estão tentando dizer: ou você curte a arte ou você a explica. Está terminando mais um período de caretice explicativa. E está recomeçando mais um período de curtição, de baixa definição, de não explicação. Saudade, hoje, é uma questão de horas”. Nunca explique o que você fez. Deixe a “explicação” patente, cristalina, visível, inscrita a ferro e fogo em sua obra. Se os que a apreciarem ainda assim não entenderem sua mensagem, paciência. O defeito, certamente, estará em quem não a entendeu (por falta de cultura, de informação ou de bom gosto, sabe-se lá) e não em quem a elaborou. Se o fez, claro, com competência e paixão, e sem burlar as regras básicas da sua arte (todas as têm).
As artes têm características peculiares, próprias, únicas – muito diferentes das ciências – que as tornam atemporais. Não são antigas e nem modernas. Não comportam datações. Não progridem e nem regridem. Ou são artes, ou não são. E, se não forem, de nada adiantará qualquer perfeccionismo, e muito menos o obsessivo. Jamais irão adquirir essa característica. A melhor explicação a propósito que já li foi a dada por Eugéne Ionesco, em entrevista publicada pela revista “IstoÉ”, em 11 de agosto de 1982 (há, portanto, quase trinta anos).
O controvertido dramaturgo romeno, indagado a respeito, afirmou: “As hipóteses científicas são excelentes num dado momento, até que outras as substituem. A medicina e a tecnologia progridem. Mas a arte nem progride nem regride. Sófocles, Shakespeare são sempre novos. Não se pode dizer que Anouilh, por ser mais moderno, ultrapassa Shakespeare. Verdadeira tradição é o que se chamou vanguarda”. Concordo plenamente com essa colocação. Nem poderia discordar. É lógica demais para suscitar dúvidas e discordâncias.
O perfeccionismo que considero salutar, por parte do artista, é o que antecede a elaboração da sua obra. É a sadia preocupação em se preparar para exercer a atividade para a qual manifesta vocação, aprendendo tudo a respeito, suas regras, suas técnicas, suas saídas e fontes de inspiração. Como? Observando, se informando e treinando para que seu desempenho seja sempre exato, preciso, cirúrgico, e não requeira reparos e nem correções. É adotando o que o editor-chefe da revista “Skeptik”, Michael Shermer, classifica como a “questão das 10 mil horas”. E o que isso vem a ser?
O jornalista explicou, em entrevista publicada no suplemento “Mais!”, da Folha de S. Paulo (na edição de 14 de setembro de 2001): “O que é preciso para ser um gênio criativo e alcançar o topo de sua área? Primeiro de tudo, há uma regra das 10 mil horas mínimas. Se você quer dominar um esporte ou uma habilidade, isso vem com 60 horas por semana durante três anos e meio. Isso é verdade em todas as profissões. Não significa que você vai conseguir. Boa biologia e genes ajudam. Mas olhe Mozart. Ele não surgiu do nada como algumas pessoas pensam. Ele teve o pai e o treinamento e fez as 10 mil horas aos 6 anos. Devoção precoce ajuda o gênio a sair”. Pense nisso!
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