Pedro J. Bondaczuk
“A arte é sempre maior que a vida”. Meditei bastante sobre essa declaração do diretor cinematográfico norte-americano, Paul Schrader, em uma entrevista à imprensa, há já alguns anos, se não me falha a memória (e não raro esta me trai) na década de 70 do século XX. Parece que foi ontem que li isso, todavia... já faz tanto tempo! A princípio, sequer dei muita importância ao que o cineasta afirmou, que foi apenas uma das tantas coisas que disse, notadamente sobre sua atividade específica, o cinema. Não sei explicar bem porque, no entanto, o fato é que esse dito em particular ficou “revirando” em meu cérebro, sem querer se apagar, como tantas coisas que leio, vejo ou ouço diariamente, e que acabo esquecendo (muitas das quais seria melhor que jamais esquecesse) que se apagam.
“Como a arte pode ser maior do que a vida se é fruto desta, se nasce exclusivamente (lógico) porque o artista que a elaborou um dia nasceu e se, para produzir sua obra, se alimentou dela, de suas nuances, dramas, comédias e tragédias etc.?”, questionei diversas vezes, disposto a esquecer essa declaração, por sua aparente inconsistência, senão incoerência. Mas não esqueci. Essas poucas palavras tornaram-se recorrentes, volta e meia voltavam-me à memória, como a exigir entendimento ou, até mesmo, explicação.
No afã de confirmar essa tese ou de comprovar sua falácia (na verdade, a tentativa, pelo menos a inicial, era esta), escrevi, muito, intensa e furiosamente, a propósito do tema. Redigi uma série de ensaios, gênero que mais se presta a esse tipo de especulação. E estes foram tantos, que geraram todo um livro, “Arte que resgata” (que talvez não consiga publicar jamais, não pelo menos em vida) e ainda restaram textos suficientes para um segundo volume. A conclusão a que cheguei foi a de que o cineasta tinha razão. Talvez (se não provavelmente) sua intenção sequer fosse a de estabelecer uma tese. É provável que se tratasse de mera frase de efeito, sem nada a ver com a entrevista.
De fato, a arte é maior do que a vida. Não de toda ela, talvez, mas maior do que a de quem a produz. Afinal, o artista, como todo ser vivo, é efêmero e passageiro. Está sempre caminhando em uma corda-bamba, suspensa sobre profundo abismo, sem rede de proteção. Quando menos espera (e ninguém espera), zás, despenca e se vai. Todavia sua obra, se autêntica e valiosa, lhe sobrevive e, mesmo que tenha permanecido por anos, quiçá séculos ou até mesmo milênios ignorada, lá um belo dia é descoberta por alguém, num feliz acaso, que a resgata e a traz à luz do conhecimento público.
Refiro-me, evidentemente, a obras consistentes, originais, espontâneas e sinceras. Àquela instintiva, natural e selvagem produzida com paixão, com o artista deitando “chispas pelos olhos”. Essa expressão artística é a única forma de sermos autênticos. Não existe outra. É nossa carta de alforria. É a absoluta e irrestrita liberdade. Na vida em sociedade nunca somos totalmente livres, embora não sintamos (não a todo o momento) ou nem pensemos nisso, os grilhões dos costumes, tradições, leis e expectativas a nosso respeito.
Convenhamos, ninguém é forçado a ser artista: músico, escritor, pintor, escultor, poeta... É escolha pessoal e intransferível, questão de vocação ou de talento. Ou se é ou não se é artista, não existe meio-termo. Sei que já escrevi a esse propósito, e inúmeras vezes, talvez com estas mesmas palavras, mas faço questão de reiterar. Fazer arte é o modo de que cada pessoa dispõe para ser livre, para impor a personalidade, para deixar a marca no mundo. Uns, de fato, deixam. Outros tantos traem essa vocação e partem para outros caminhos, menos incertos, pedregosos e espinhosos, posto que menos nobres.
A aceitação ou não do que o artista produzir vai depender de critérios subjetivos de apreciação e avaliação dos destinatários. Mas a arte não comporta interferências e nem censuras. A liberdade de escolha do artista tem que ser respeitada e irrestrita. Só a ele cabe decidir sobre o que, quando, como e onde criar. E sem dar explicações a ninguém sobre o que criou e com qual objetivo. Compete ao “apreciador”, ao “consumidor” da arte fazer a própria interpretação.
Outro cineasta, Stanley Kubrick, declarou, em entrevista concedida em 1962, há, portanto, 50 anos: “Um artista não dá explicações. Que diriam todos se Leonardo da Vinci escrevesse sob a Gioconda uma legenda do tipo – Ela está sorrindo porque recebeu excelentes notícias da família?” Sim, o que diriam? Certamente receberiam essas explicações com deboche, o que é o mais provável.
As artes, qualquer delas, estão entre as atividades mais nobres que existem. Mostram a vida não somente como ela é, mas, principalmente, como poderia e deveria ser (e que, de fato, poderá se concretizar, caso atuemos positivamente para torná-la ideal). Nem todos, é verdade, têm habilidades artísticas. Mas ninguém é despido de sensibilidade a ponto de não apreciar um belo poema, um quadro pintado com maestria, uma sinfonia harmoniosa e marcante ou uma escultura executada com perícia.
O artista valoriza, sobretudo, a beleza que nos rodeia e que dá encanto à vida. Ademais, como lembra o escritor Bertold Brecht, “todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver”. E esta é fundamental. Ou seja, saber como andar nessa corda-bamba sem despencar de cara no abismo é o que se pode chamar de “sabedoria”. Sobretudo, fazer essa peripécia de equilíbrio com transcendência, grandeza e beleza. É por isso que a arte, em sentido genérico, é maior, muito maior do que a vida, concordemos ou não. Porquanto é, no final das contas, tentativa (na maioria das vezes bem-sucedida) de sua interpretação, feita pelo artista.
Tudo o que o cerca, animal, vegetal ou mineral não importa, é tema potencial para suas criações, temperado, claro, pelo seu talento, experiência e modos de enxergar as coisas. Deleito-me, e aprendo muito mais sobre mim e o mundo nas obras dos grandes criadores, do que na filosofia, nas ciências e em outras tantas disciplinas criadas pelo e para o homem. A natureza, se bem observada, é, por si só, inigualável obra de arte. Ás vezes é tétrica (e, para o artista, há beleza até na extrema feiúra), às vezes sublime, dependendo do que se observa.
Mais do que agradar os sentidos, o principal papel do artista é induzir o observador à reflexão e à análise do que é e onde está. Sê-lo, portanto, é enxergar o outro lado das coisas e se deleitar com ele. É agir, por exemplo, como o poeta Mauro Sampaio sugere em seu poema “Rosa”: “Amar a rosa, não pelo perfume,/mas pela arrogância das pétalas”. Porquanto, como declarou o ilustre psicanalista Carl Gustav Jung: “O artista é um homem coletivo que exprime a alma inconsciente e ativa da humanidade”.
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