Thursday, July 12, 2012

Beleza e solidez

Pedro J. Bondaczuk

Acompanho a literatura portuguesa (aqui me refiro à praticada especificamente em Portugal), posto que não com a assiduidade desejável (e desejada), por razões que fogem ao meu controle. E esse acompanhamento, posto que parcial, é feito há muito tempo, há cerca de quatro décadas. Nesse aspecto, diga-se de passagem, evoluí bastante, com o advento da internet, que me possibilita acesso a sites literários da boa terrinha e mantém-me, dessa forma, razoavelmente informado a propósito.

Entre os inúmeros e excelentes escritores portugueses, tenho um carinho muito especial por um que, na juventude, viveu um tempinho no Brasil e que, depois que voltou a fixar residência em Portugal, sempre que podia, nos visitava. Mas aprecio-o não apenas por essa assiduidade entre nós (óbvio), mas, sobretudo, pela qualidade da sua obra, o que é incontestável. Trata-se de um escritor dos mais consagrados, tanto em sua terra natal, quanto no Brasil. Refiro-me ao poeta, contista, memorialista, romancista, autor de peças teatrais e ensaísta Miguel Torga.

Em literatura detesto essa história de se declarar que fulano, sicrano ou beltrano seja “meu preferido”. Posso preferi-lo num determinado momento, até por desconhecer as obras de outros, mas isso não quer dizer que despreze os demais, ou que lhes tenha menor apreço. Tenho o direito de gostar não apenas de um, mas de centenas, de milhares, quem sabe de milhões de escritores, e simultaneamente, por razões diferentes (ou mesmo iguais), e com a mesma intensidade. Por que não? O que me impede? Afinal, literatura não é competição e eu não sou jurado para optar por um ou por outro.

Meus gostos são ecléticos e cumulativos, ou seja, têm acréscimos constantes e novidades periódicas sem que, com isso, abra mão de preferências anteriores. E (felizmente) não faltam magos do texto para me encantar, ensinar, atrair e influenciar. Gosto de bons textos, dos bem escritos, com temas espicaçantes, que não somente me ensinem o que não sei, mas que me induzam à reflexão. E a obra do português Miguel Torga está entre as que me encantam, ensinam, atraem, influenciam e satisfazem minha fome estética.

Coleciono seus poemas, tanto os publicados em livros (infelizmente tenho apenas dois deles, por razões, digamos, financeiras, de falta de dinheiro mesmo), quanto os divulgados pela imprensa (provavelmente uma centena, devidamente classificados em minha preciosa hemeroteca). Gostaria de ter mais, óbvio, se possível todos os que ele escreveu. Mas... entre a nossa vontade (no caso, a minha) e a possibilidade de satisfazê-la vai uma distância imensa, impossível de se mensurar.

Miguel Torga foi um poeta tão criativo (e digo “foi” porquanto já é falecido; morreu em 17 de janeiro de 1995 na cidade de Coimbra, onde residia) que esbanjou criatividade até na escolha do pseudônimo que adotou e com o qual se consagrou. Seu nome de batismo é Adolfo Correia da Rocha, mas são raras as pessoas (talvez um ou outro parente ou amigo íntimo) que o conhecem dessa forma. Esbanjou veia poética até nesse detalhe, aparentemente de pouca importância.

Ah, vocês querem saber onde a criatividade na escolha desse pseudônimo, aparentemente trivial? Pois lhes explico, mas recorrendo à providencial ajuda do Wikipédia. A excelente enciclopédia eletrônica da internet informa que o prenome Miguel foi uma homenagem a dois outros “Miguéis” bastante ilustres: o de Cervantes (criador do imortal Dom Quixote de La Mancha e seu inseparável parceiro Sancho Pança) e o de Unamuno, sublime poeta espanhol. E o Torga? De onde extraiu esse nome, já que não se trata de sobrenome, não, pelo menos, o de sua família?

O Wikipédia nos revela essa particularidade. E nela há um símbolo que caracterizou tanto sua personalidade, quanto sua maneira de escrever. A enciclopédia eletrônica registra que “Torga é uma planta bravia da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da rocha, de flor branca e arroxeada ou cor de vinho, com um caule incrivelmente retilíneo”. E o que isso simboliza? Simboliza simplicidade, mas com beleza. Simboliza solidez. Simboliza retidão. O escritor adotou esse pseudônimo, tão de acordo com sua personalidade, em 1934, quando já contava com 27 anos de idade.

Sua obra é vastíssima. Ascende a cerca de quatro dezenas de livros, entre poesia e prosa. Não tive acesso aos seus romances, ensaios e peças teatrais, mas, a julgar por sua poética (e pelos inúmeros prêmios literários que recebeu), estou seguro que é sólida e bela, como seu pseudônimo sugere que ele e tudo o que fez sejam. Tenho, como destaquei, apenas dois livros de Miguel Torga, mas que praticamente resumem todos os de poesia que escreveu: “Poesias Completas – volumes I e II”. Foi do primeiro deles que extraí este marcante poema, que partilho com vocês, a título de ilustração (e para encerrar estas reflexões):

Confidencial

“Não me perguntes, porque nada sei
da vida,
nem do amor,
nem de Deus
nem da morte.
Vivo,
amo,
acredito sem crer,
e morro, antecipadamente
ressuscitado.
O resto são palavras
que decorei
de tanto as ouvir.
E a palavra
É o orgulho do silêncio envergonhado.
Num tempo de ponteiros, agendado,
Sem nada perguntar,
Vê, sem tempo, o que vês
Acontecer.
E na minha mudez
aprende a adivinhar
o que de mim não possas entender”.

Lindo, não é verdade? E sólido, como a planta “Torga”, na qual se inspirou para compor parte do seu marcante pseudônimo.

Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

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