Pedro J. Bondaczuk
O mundo está tendo a oportunidade de testemunhar fatos impressionantes, que certamente serão ricas matérias-primas para os historiadores do futuro, quando estes narrarem os episódios marcantes deste fim de década. O que aconteceu em Pequim, entre o sábado e o domingo passados, é algo para não ser jamais esquecido, pela brutalidade da ação e pela intensidade do drama.
Mas os acontecimentos que se verificaram entre anteontem e ontem, no Irã, também foram inesquecíveis. Uma multidão enlouquecida de dor, indiferente à sorte pessoal de cada um de seus integrantes, disputava, ontem, freneticamente, pedaços da mortalha do aiatolá Ruhollah Khomeini, chefe espiritual de cerca de 45 milhões de iranianos.
A ânsia de conseguir uma tira, por mais insignificante que fosse, dessas vestes consideradas “divinamente abençoadas”, fez, inclusive, com que a turba chegasse, inconscientemente, a profanar os próprios restos mortais do objeto de tamanha veneração.
O corpo do velho aiatolá, tão odiado no Ocidente e venerado com tamanho fanatismo em sua nação, chegou a rolar, desnudo, no solo, tamanho era o desejo popular de conseguir uma derradeira lembrança, um último pedaço de algo que lembrasse concretamente o controvertido patriarca.
Os dois incidentes, o de Pequim e o de Teerã, mostram que tanto o ódio quanto a adoração, desde que exacerbados, tendem a produzir resultados daninhos. Ensinam que o homem não é tão racional quanto se apregoa, muito pelo contrário.
As mesmas paixões dos ancestrais das cavernas, cegas, desvairadas, irracionais, coabitam o “homo sapiens” desse final de milênio, tido e havido como sendo o da plena civilização. Ou a era da conquista espacial e da comunicação em massa. No entanto, os neurônios continuam sendo sufocados, invariavelmente, pelos hormônios.
As paixões teimam em afogar a razão a todo o momento, tanto nos mais simples e corriqueiros atos do dia a dia, quanto nas ocorrências tendentes a mudar o curso da história.
A humanidade, embora as grandes conquistas tecnológicas tenham beneficiado a milhões (quiçá alguns bilhões) de seres humanos, não se desenvolveu, em sentido mental, de forma homogênea. Ilhas de civilização coabitam com continentes de barbárie. Isto, sem que haja limitações geográficas definidas.
Às vezes tal fenômeno se verifica dentro de um mesmo país, de um mesmo Estado, de uma mesma cidade, de um mesmo quarteirão, de uma mesma rua e até mesmo de uma mesma casa. Essas diferenças de visão, de enfoque e principalmente de atitudes, são mais comuns do que se pensa.
Até parece que os grupos, em vários estágios civilizatórios diferentes, embora tendo o aspecto externo semelhante, descendem de seres de espécies totalmente diversas. Que os fatos chocantes dos últimos dias não sejam “consumidos”, pois, e jogados fora, como se costuma fazer nessa era do desperdício. Que deixem em cada um de nós uma lição profunda e marcante, sobretudo de humildade por nossa pequenez.
(Artigo publicado na página 12, Internacional, do Correio Popular, em 7 de junho de 1989).
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