Pedro J. Bondaczuk
Vocês já atentaram para o fato de que consideramos determinados escritores – pela identidade que temos com suas idéias, por ideais pelos quais lutam e por sua postura face à vida – amigos, mesmo que jamais tenhamos nos visto, conversado e que sequer eles saibam, ou mesmo desconfiem, da nossa existência? Familiarizamo-nos de tal sorte com eles, que é como se freqüentassem nossa casa, conhecessem nossos gostos e pensamentos, soubessem de nossos problemas e ambições, nos aconselhassem quando conselhos se fizessem necessários, nos repreendessem (com doçura) quando tivéssemos que ser repreendidos e satisfizessem, enfim, todas as necessidades psicológicas, tudo o que esperamos de uma legítima, sólida e intimíssima amizade.
Com base nesse parâmetro, posso afirmar, com rigorosa segurança, que tenho mais, bem mais de um milhar de amigos desse tipo. E a cada dia, acrescento mais e mais escritores a esse círculo de amizade, sem abrir mão de um único dos que já tenho. É um processo de permanente acréscimo no qual toda a vantagem é minha. Enriqueço minha vida, torno-me um pouco (ou muito, sei lá) mais sábio, sem que retribua esses ganhos em idêntica medida. Esse raciocínio vale, observo, não apenas para escritores. Tenho essas “amizades espirituais” também com atletas, cantores, músicos, artistas plásticos ou, simplesmente, com correspondentes da internet. Pena que não haja reciprocidade. Ou seja, que todo esse pessoal não me considere, também, amigo (embora haja, posto que raras, exceções).
Em muitos casos (talvez na maioria), essas amizades nem poderiam contar com a devida correspondência? Por que? Porque essas pessoas que consideramos amigas (e ainda por cima, íntimas) já morreram. E esse sentimento de intimidade e fraternidade é tão intenso e profundo, que nem a morte é empecilho para que essas amizades se preservem e se mantenham tão sólidas como quando começaram.. Ela é intemporal. E independe de qualquer fator objetivo. Ou seja, permanece intacta além da vida.
Mesmo depois de falecidos, esses escritores (que, no meu caso, constituem a imensa maioria desses “amigos espirituais”) permanecessem vivos, vivíssimos em nossa memória e em nossas emoções. Seus espíritos ficam retidos nas páginas dos livros que escreveram, nas entrevistas que deram a jornais e revistas e, ultimamente, nos textos que, em vida, postaram na internet, em múltiplos sites e/ou blogs.
Essa chama de genialidade nos acompanha, como anjos da guarda, como espíritos tutelares, ao longo da nossa jornada pelo mundo. É possível, se não provável, que se um dia cruzarmos com um desses nossos ídolos intelectuais vivos, que tanto prezamos, em uma rua qualquer de alguma cidade, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília, Recife ou, no meu caso, Campinas, passemos, um pelo outro, com absoluta indiferença. Talvez nem nos reconheçamos. Não descarto que isso já tenha ocorrido algum dia comigo. É possível e até provável. Nossa identidade, reitero, não é física. É intelectual. Vou mais longe: é espiritual.
Conhecemo-los bem (mesmo que não haja reciprocidade), talvez melhor, até, do que seus mais chegados parentes. Consideramo-los “amigos”, no sentido mais estrito de amizade, mesmo que jamais, por alguma razão, não nos refiramos a eles dessa maneira. Afinal, o que vem a ser amizade? Não é a identidade de idéias, sentimentos e emoções? Não é a existência de interesses comuns? Pois então, todos esses escritores que tanto aprecio e venero são, rigorosamente, amigos, mesmo que não nos conheçamos pessoalmente e que não haja reciprocidade da parte deles. Desconfio que se as circunstâncias nos aproximassem, e possibilitassem convivência física, material, constante, tête-a-tête, esse sentimento seria recíproco.
É tudo isso que expus, com tamanha emoção (até visceralmente), mas pouca razão, o que sinto pelo mexicano Octávio Paz. Claro que jamais o vi cara a cara, mesmo que ele tenha estado em inúmeras ocasiões no Brasil. Oportunidades para esse encontro não faltaram e ele só não ocorreu em decorrência das circunstâncias. Sempre elas... E jamais ocorrerá, já que este poeta, ensaísta, diplomata e tradutor, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1990, morreu, e há um bom tempo, em 19 de abril de 1998. Sua morte, todavia, não alterou para pior nem um reles milímetro do meu sentimento de “amizade espiritual” por ele. Desconfio que até o aprofundou.
Refletindo, hoje de manhã, sobre o que escrever neste espaço, subitamente me dei conta de uma imensa “mancada” minha em relação a este meu ídolo. Abordei, neste espaço (e vocês são testemunhas), a obra, e em muitos casos a vida, de pelo menos um milhar de escritores que fazem parte do meu imenso círculo de “amizades espirituais”. Todavia... nunca, nunca mesmo redigi um só texto abordando, especificamente, este meu “amigão”. Não se trata, óbvio, de menosprezo por ele. Talvez tenha me faltado oportunidade para essa abordagem. Sim, talvez. Citei-o, é verdade, em algumas ocasiões, posto que apenas de passagem. Prometo, no entanto, (a vocês e a mim mesmo) corrigir, doravante, essa imperdoável omissão. Aguardem.
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