Pedro J. Bondaczuk
A criação de personagens é uma arte dentro da arte. Explico melhor. Da perícia do escritor de ficção nessa tarefa depende o sucesso ou o fracasso de um romance, conto, novela, peça teatral ou roteiro de cinema. Lembramo-nos de determinados livros nem tanto pelas histórias contadas, mas pelos tipos que a “vivem”. Faz-se até desnecessário citar exemplos, tantos que eles são. Quem já leu “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, não consegue ignorar Capitu. E nem poderia. E não somente ela, mas o desconfiado Bentinho também é inesquecível, assim como outros protagonistas brotados da inspirada pena do “Bruxo do Cosme Velho”.
Querem outro exemplo (embora, reitero, esses se façam desnecessários)? Cito outros dois, Riobaldo e Diadorim, de “Grande sertão veredas”, de João Guimarães Rosa. Poderia citar, ainda, o Vadinho, de “Dona Flor e seus dois maridos”, de Jorge Amado e muitos e muitos outros personagens marcantes, que se destacaram e ganharam seu lugar no mundo, como se fossem pessoas que tenham vivido, ou seja, de carne e osso, e não meros produtos da mente fértil e criativa de magníficos escritores.
Requer-se certo cuidado na criação dessas figuras emblemáticas, para que elas ganhem, de fato, essa característica de perpetuidade e, sobretudo, de verossimilhança. O ficcionista não pode carregar nas tintas. O herói da história não pode ser perfeito demais, virtuoso em excesso, hábil em tudo o que faz, já que nenhum ser humano é assim. Tem que ter um defeito ou outro, pois é assim que os homens são: repletos de contradições e imperfeições, dados a eventuais deslizes de caráter, e adstritos às circunstâncias, nem sempre (ou quase nunca) benignas. No extremo oposto, os vilões não podem ser personificações de demônios, a engendrarem e praticarem maldades o tempo todo. Isso, igualmente, não é o normal.
Cada escritor tem seu método próprio de criação dos personagens. Há os que elaboram extensa galeria destes, antes mesmo de terem em mente o enredo em que pretendem utilizar tais figuras, verdadeiros dossiês de tipos, com suas respectivas características físicas, psicológicas e comportamentais. Outros tantos, todavia, criam-nos para atender as exigências específicas dos enredos já engatilhados e prontos a serem desenvolvidos. Não posso definir qual seja o melhor método. Creio que se trate do que melhor funcione para cada um. Já agi das duas maneiras e ambas funcionaram a contento.
Outro fenômeno que ocorre em relação a determinados personagens é o seu “crescimento” no desenvolvimento da história. Há alguns que o autor cria com a intenção de não passarem de meros “figurantes”, com papeis bastante restritos, apenas ocasionais, nitidamente secundários. Contudo, á medida em que a narrativa se desenrola e, dadas suas peculiaridades, o escritor faz crescer sua importância. E, em casos extremos, eles chegam a “roubar” a cena, ou seja, a condição de personagens centrais dos primitivamente determinados para ostentarem essa função.
Emile Zola rotulou o escritor de “historiador da moral humana”. E estava errado? Claro que não. É isso que nós, que exercemos essa fascinante, posto que perigosa e não raro frustrante atividade (e o perigo reside na possibilidade de resvalarmos facilmente para o ridículo), de fato somos. Para tanto, devemos ser, além de atentíssimos observadores, pessoas muito bem informadas. Se não tivermos condições de reunir, simultaneamente, essas duas características, será mais prudente e inteligente escolhermos outra atividade, que não a literatura, para exercer. Como criar personagens marcantes, verossímeis e que se destaquem sem contar com essas virtudes que citei? Não vejo como.
Zola conclui que o ficcionista, “historiador da moral humana, deve ser um pintor de tipos, um narrador de dramas, e um colecionador do bem e do mal. Tanto sobre a moral como sobre a religião e a política, um escritor deve ter idéias bem definidas; deve ter a sua opinião sobre os negócios dos homens”. E não é assim? Se alguém discordar (embora não creio que se discorde), que me explique como é possível se escrever sobre algo que se desconhece. Não vejo como alguém possa fazer essa mágica. Ouso afirmar que não pode.
Há quem exagere na utilização de alguns recursos e, em vez de traçar um perfil verossímil de determinado personagem, na verdade esboça nada mais do que mera “caricatura”. Leitores desavisados, que se deixam prender, apenas, pelos enredos, nem sempre percebem isso. Todavia os mais cultos e preparados notam nitidamente esses exageros e deixam de comprar novos livros de escritores que ajam dessa maneira, imperita, para não dizer, “relapsa”.
Há quem apele e, no afã de conquistar adeptos, optando pela quantidade, em detrimento da qualidade, cometa deliberados abusos na utilização de determinados recursos temáticos, a pretexto de ser realista. por explorar histórias “escabrosas” – e não apenas eventualmente, mas de forma contumaz – seus personagens são, igualmente, corruptos, oportunistas, lascivos e imorais, mas de forma exacerbada. São pintados com cores tão fortes, que se tornam inverossímeis. Há quem goste desse tipo de literatura. Eu (e milhões de outras pessoas de bom gosto) detesto.
Érico Veríssimo, tratando do que chamava de “romance proletário”, criticou acerbamente esse procedimento. Sua crítica não foi feita em crônica ou ensaio, mas no enredo de uma de suas histórias mais marcantes, no livro “Olhai os lírios do campo”. O romancista gaúcho coloca, na boca de um dos seus personagens (na página 170, parágrafo 3, do capítulo 14) o seguinte desabafo: “Pornografia, quadros de miséria, termos da gíria, efeitos negróides, eis os grandes condimentos dos nossos chamados romances proletários. Cheiram mal desde a primeira até a última página. E todos nós somos um pouco culpados do nascimento e da aparente prosperidade desses escritores”.
E temos mesmo culpa em cartório, ou por ação, ou por omissão. No primeiro caso, por “incensarmos” esses autores, por alguma razão qualquer, dando-lhes cartas de salvo-condutos para que reiterem esse procedimento. E, por omissão, por não termos coragem de criticar essa prática, fazendo com que esses “apeladores” prosperem e se consolidem. Afinal... quem cala, consente. É certo que o tempo sempre se encarrega de colocá-los no seu devido lugar, ou seja, no ostracismo, de onde jamais deveriam ter saído. Mas até que isso aconteça, muito dinheiro é jogado fora, nas livrarias, com obras pífias, apelativas e sem proveito para ninguém, a não ser para seus autores e, claro, seus editores.
Há uma linha sutil, sutílima, separando histórias “eróticas” (aliás muito difíceis de se escrever com arte e bom gosto), da escrachada pornografia. No fulcro de ambas, óbvio, está a figura da mulher. No primeiro caso, esta é valorizada no que tem, inclusive, como uma das principais virtudes: o fato de atrair fisicamente o ser amado. Mas aqui ela é a protagonista, “senhora” dos seus desejos. No segundo caso, todavia, é tratada como mero “objeto”, como pedaço de carne que se pode dispor ao bel prazer. Personagens que primam pelo erotismo, mas que não descambam para a pornografia explícita, são os mais difíceis de se compor. São tarefas para mestres da ficção e não para meros garatujadores, que apelam e se aproveitam da ignorância alheia para faturar.
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