Pedro J. Bondaczuk
A história contemporânea de Moçambique, um dos três países mais pobres do mundo, ignorado pela comunidade internacional (quer no Leste europeu, quer no Ocidente), confunde-se com a de seu líder, o presidente Samora Moisés Machel, que morreu, ontem à noite, em um acidente aéreo.
Foi uma longa e penosa trajetória de ambos, marcada por pequenos avanços e monumentais recuos. O leitor haverá de convir que dirigir um país com carência de tudo, principalmente de pessoas preparadas para assumir tarefas de fundamental importância, é uma façanha imensa e, na maioria das vezes, irrealizável. Foi o que aconteceu com esse sonhador, que aspirava construir, do nada, uma sociedade justa e igualitária, em que não houvesse miseráveis e nem privilegiados.
Moçambique, descoberto em 1498 por Vasco da Gama, quando de sua histórica viagem às Índias, é um território que até apresenta um subsolo repleto de riquezas. Em seus 799.380 quilômetros quadrados, existem inúmeros minérios que, se explorados, poderiam significar a redenção econômica do seu povo. Mas não são.
Seus mais de 14 milhões de habitantes, no entanto, não contam com os recursos necessários para explorar o que a natureza escondeu. Esse país, recorde-se, foi um dos mais afetados pela fome que se abateu sobre 33 sociedades nacionais africanas, há dois anos, ocasião em que mais de 100 mil camponeses morreram por absoluta falta de comida.
A imprensa ocidental, na oportunidade, preferiu concentrar as atenções sobre o que ocorria na Etiópia e, como sempre, mais uma vez, Moçambique ficou esquecido e entregue à própria sorte. Com um Produto Interno Bruto de US$ 1,8 bilhão, todo ele penhorado por causa de uma dívida externa que, evidentemente, os moçambicanos jamais terão condições de pagar, a renda per capita anual de cada habitante local é de irrisórios US$ 140. Isso mesmo, por ano!!! Ou seja, o equivalente a pouco menos de três meses de salário-mínimo brasileiro que é, reconhecidamente, um dos mais baixos do mundo!
Com tudo isso como obstáculo, Samora Machel até que vinha tentando fazer o possível (e o impossível) para, pelo menos, minorar tamanha carência, buscando ajuda (migalhas, diga-se de passagem), aqui, ali e acolá, onde encontrasse alguém disposto a lhe dar ouvidos e confiar no espírito de luta e operosidade do seu povo.
No começo desta década, o presidente moçambicano pôde sentir, na própria carne, os males de uma economia concentrada nas mãos do Estado. E, homem pragmático que era, não titubeou: abriu espaços para a atuação da iniciativa privada, sem dar ouvidos às críticas e reprimendas dos ideólogos de plantão, quer locais, quer do exterior.
Para complicar um quadro, já por si só desolador, de um país que obteve a independência, sem contar com a menor infra-estrutura para encarar os desafios de uma vida independente, Samora Machel enfrentou, desde o primeiro dia da autonomia política nacional, uma luta sem tréguas com a guerrilha de direita. Esta, sim, contando com farto apoio externo – por defender teses convenientes ao Ocidente – era bem-armada, bem-alimentada e treinada pelos melhores especialistas militares da região.
A principal fonte de financiamento dos guerrilheiros foi o regime racista da África do Sul, que via sério perigo no fato de existir um governo marxista bem na sua fronteira setentrional. Tudo o que sempre se construiu, em Moçambique, num dia, em termos de rodovias, ferrovias ou hidrelétricas, foi, sistematicamente, destruído nos dias seguintes pelos rebeldes.
Com o objetivo de obter uma trégua, que lhe desse algum fôlego para governar e desenvolver o país, Samora Machel se convenceu da necessidade premente da assinatura de um acordo com o regime sul-africano do apartheid. Em troca da proibição da instalação de bases do Congresso Nacional Africano em seu território, a África do Sul comprometeu-se a suspender toda a ajuda à direitista Resistência Nacional Moçambicana (Renamo).
De início, tudo caminhou a contento. Contudo, acuado pela intensificação da luta interna, o governo racista sul-africano violou o acordo e não cumpriu, dessa forma, a sua parte no trato. É, inclusive, por essa razão que pairam fortes suspeitas de que o regime da África do Sul tenha algo a ver com esse estranhíssimo e mal-explicado acidente aéreo, que ceifou a vida de um líder que o incomodava tanto.
O que será desse país, daqui para a frente, sem o comando e a liderança do seu herói nacional, do pai da sua independência? É uma grande incógnita, um maiúsculo ponto de interrogação que paira no ar. Endividado, faminto e sem pessoas preparadas para tirá-lo desse atoleiro, Moçambique corre, ainda, o risco de se tornar outro campo de confronto ideológico e, pior do que isso, militar, do Leste e Oeste, em sua estúpida e interminável guerra fria.
O bloco marxista, liderado pela URSS, evidentemente, vai buscar, de todas as formas, conservar esse país (ao qual jamais socorreu economicamente), ao qual enviou, apenas, toneladas e mais toneladas de armas, em sua órbita de influência. O Ocidente, por seu turno, tendo à frente os Estados Unidos e seu preposto, a racista África do Sul, irá se empenhar a fundo, tendo como ponta-de-lança a direitista Renamo, mesmo que negue, para implantar uma espécie de neo-colonialismo, tão nocivo para os moçambicanos quanto aquele que vigiu em seu território antes que Moçambique obtivesse a independência de Portugal.
Dias muito amargos e tormentosos, portanto, parecem ameaçar esses nossos irmãos de comunidade de língua portuguesa da África. Tomara que eles se livrem da influência desses dois blocos e saibam traçar os seus próprios caminhos. Sem Samora Machel, todavia, esse é um desafio como nunca antes a população de Moçambique enfrentou.
(Artigo publicado na página 13, Internacional, do Correio Popular, em 21 de outubro de 1986).
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