Sunday, July 01, 2012

Intelecto e emoção

Pedro J. Bondaczuk

Gosto (óbvio) de receber presentes. Ao ser presenteado, sinto que quem me presenteou me tem certo apreço. Caso contrário... não se disporia a me presentear. Ninguém adota esse tipo de atitude, gentil e atenciosa, com inimigos. A menos que o “presenteie” com uma cobra, por exemplo, como a que (se conta) que picou Cleópatra, levando-a à morte, ou algo do gênero. Isso, porém, não se trata de presentear. É outra coisa. É armar cilada ao desafeto.

É verdade que, muitas vezes, presenteamos pessoas tendo em vista algum interesse específico que esperamos seja atendido. Ainda assim, é gesto de apreço. Não avalio presentes pelo valor econômico, mas no aspecto sentimental. Por isso, valorizo um pouquinho mais os que não tenham exatamente caráter utilitário, que não se tratem de objetos de uso pessoal, como roupas, sapatos, perfumes e outros quetais, que com o tempo se acabam pelo uso.

Prefiro os inesgotáveis, os que têm o caráter de permanência e, entre estes, minha preferência recai sobre livros. E destes, valorizo ainda mais os de poesia, que não se “esgotam” à mera leitura, como romances, contos e novelas que, mesmo relidos, após certo tempo permanecerão inertes na estante da biblioteca, e muitos deles jamais voltarão a ser abertos.

Todo este extenso preâmbulo vem a propósito de um presente que recebi, em fins do ano passado – mas antes do período de festas, o que aumenta o valor do mimo, por me haver sido dado sem nenhum pretexto especial. Não era Natal, Ano Novo e nem meu aniversário. E, ainda assim fui presenteado. E mais, com o que mais gosto de ganhar: livro. E mais ainda, com volume de poesia. E outro e enfático mais: contendo poemas primorosos, de excelente qualidade. Para ser rigorosamente exato, devo destacar que não se tratou de “um” presente. Foram, na verdade, “três”! E livros. E de poesia. E de imensa qualidade.

Quem me presenteou foi o poeta Wilbett Oliveira. Não me deterei em traçar seu perfil, que já apresentei neste espaço, por ocasião do lançamento de um de seus outros livros. Ademais, voltarei, certamente, a tratar desse escritor em outras oportunidades. Hoje, tratarei dos presentes que me deu. E que presentes! Foram os livros “Sêmen”, “Raízes” e “Salignalinguagem”. Asseguro-lhes que cada um deles é uma preciosidade, um desejável tesouro de sabedoria e bom gosto.

Divido poesias em três categorias básicas. Na primeira incluo as que brindam nosso intelecto, com metáforas e expressões que acionam o gatilho da nossa inteligência. Prestam-se, sobretudo, à meditação. São, além de agradáveis de ler, bastante úteis. Na segunda categoria coloco as que “falam” direto ao coração. Mexem com a sensibilidade e despertam e/ou aceleram emoções. São bálsamos para a alma, principalmente quando atravessamos fases negativas de vida (como a que atravesso agora, em decorrência de várias decepções). A terceira, finalmente, é a que reúne o útil ao agradável. Constituem-se em lautos banquetes, tanto para a alma, quanto para o intelecto. Esse tipo de poesia, posto que raro, é imprescindível. E é o que caracteriza os três livros com que Wilbett me presenteou.

Esse poeta hábil e inspirado tem características sumamente peculiares. Os poemas de seus livros não têm títulos. E prescindem de letras maiúsculas. Mas isso não é feito “gratuitamente”, por mero capricho. Tem importante função. E o leitor logo descobre qual é. Cada livro, na verdade, é um único e extenso poema. E a ausência de maiúsculas sugere continuidade, sem que haja qualquer interrupção, mesmo que para respirar. É dessa forma que seus versos devem ser lidos, interpretados e, principalmente, “sentidos”. Porquanto, reitero, tocam, simultaneamente, o intelecto e o coração.

Destaco, do livro “Sêmen” – que no título já sugere vida, porquanto se trata de uma de suas fontes (a outra, óbvio, é o óvulo, que o complementa) –, três poemas, todos sem título (pois como ressaltei, os três volumes são, na verdade, cada um deles, um só poema) e sem maiúsculas, sugerindo continuidade. O primeiro é o da página 12 e diz:

“guardar fantasias no alforje
quixote sem Sancho
sem chances
solitário cavaleiro indumentário
lancelot errante
amadis e rocinante”.

O segundo, desse livro, está na página 18 e nele o poeta assim se expressa:

“desenraizar-se das próprias raízes
entranhas semelhanças
que se fecundam

exaurir-se por escrever
implodir-se em versos
enquanto forças houver
mesmo que se reduza
a um só canto
e preencha o quanto”.

O terceiro dos poemas de “Sêmen” que partilho com vocês é o que consta da página 66:

“tecer a margem do rio
a terceira margem do riso
até mar: gene do rio
até se amar: zen do rio
e lançar-se na água: sêmen do rio

dar-se a tudo
e a todos quantos queiram
ao mundo se dar”.

Viram como não exagerei quando declarei que a poesia de Wilbett Oliveira é um “banquete”, um festim, um “festival gastronômico” de inteligência e sensibilidade?! Mas não paro por aí. No meu entusiasmo, partilho com vocês mais três poemas, desta vez do livro “Gris”. O esquema é o mesmo do anterior. Ou seja, nenhum deles tem título, sugerindo que todos que constam do volume são um único e extenso poema, que não conta, também, com maiúsculas.

Destaco, em primeiro lugar, estes versos, da página 63:

“peixes de nós
em que espadas espinhos
agulhas enguias
o último signo

feixes de nós
em que chamas labaredas
faíscas
o último lenho

seixos de nós
em que mármores e granitos
em gessos e em pedras
a última edificação

aluminosidade no escuro dos olhos
brancos onde flúor
aquela lança
lance o olhar”.

O segundo poema de “Raízes” que separei é este da página 75:

“esconder-me em mim
retornar à minha própria margem

ser a pedra angular de mim mesmo
não me explicaria
nem as minhas angústias”.

Finalmente o terceiro destaque de “Raízes” está inscrito na página 76:

“o tempo não passa
ressurgindo no instante mesmo em que somos

no instante em que teço um poema gris
como se houvesse um poema a ser escrito
no branco das páginas”.

Para concluir a amostragem, partilho com vocês mais estas “iguarias” intelectuais (e sentimentais) constantes do livro “Salignalinguagem”, do qual selecionei, como fiz nos dois anteriores, também três poemas. O primeiro é este da página 21:

“pássaros de fogo e promessas
em asas de cera ao sol
de desertos inóspitos
e o mundo todo em cal

tenho um coração humano
se as cousas me redimem”.

O segundo poema está na página 25 e diz:

“vôo enchendo as noites
de borboletas e sais e girassóis
pra me acostumar
ao veneno do mundo”.

Finalmente o terceiro poema desse terceiro livro que selecionei (já com gosto de “quero mais”) é este, da página 37:

“e um ruído visceral
ressoa no ventre dos sinos
que tangem as tardes em nuvens
de intenso róseo”.

Wilbett Oliveira pode estar certo de que me lembrarei dele todos os dias, sem exceção de nenhum, pelos anos afora. Tenho o hábito de, diariamente, antes de iniciar as tarefas cotidianas, ler, a título de reflexão, um ou dois poemas. E os dele, por serem, simultaneamente, reflexivos e emotivos, certamente terão prioridade. Que baitas presentes você me deu, ilustre poeta!

Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

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