Wednesday, July 25, 2012

Olho de vidro

Pedro J. Bondaczuk

Olho de vidro. Esta é a feliz metáfora que a filósofa, artista plástica e escritora Márcia Tiburi utiliza para caracterizar um dos mais difundidos e importantes veículos de comunicação do nosso tempo, a televisão. Fez isso num extenso ensaio, enfocando, sob um ângulo até então não abordado, esse instrumento de informação, diversão e veiculação do que de mais importante (e também “desimportante”, por que não) ocorre ao redor do mundo. É uma reflexão feita por quem está afeita a refletir quer sobre o concreto, quer sobre o abstrato, sobre a vida, enfim, não fora este o objeto de sua atividade. Afinal, trata-se de filósofa e das mais conceituadas.

Esse longo e bem pensado (e também bem escrito) ensaio redundou num livro, intitulado “Olho de vidro – A televisão e o estado de exceção da imagem”, lançado, em meados de 2011, pela Editora Record. A obra foi escrita do ponto de vista não do telespectador, mas de alguém envolvido na produção do que vai ao ar, atingindo os mais diversos públicos. Ocorre que quando o livro foi escrito, Márcia participava do programa “Saia justa”, no canal de televisão a cabo GNT. Suas reflexões, visões e análises, portanto, são apresentadas sob a ótica não de quem vê, mas de quem faz o que é exibido para ser visto.

Essa metáfora de “olho de vidro”, utilizada para caracterizar a TV, precisa ser corretamente interpretada. Ao contrário da prótese, de caráter puramente estético, usada para substituir esse órgão tão importante (que nos coloca em contato com o que nos cerca), quando ele precisa ser extraído, a televisão enxerga, e muito. Vislumbra não apenas a realidade, mas “vê” além dela. Quando se analisa esse veículo, é preciso enfocar mais do que um aspecto. A maioria dos comentários que leio, a seu propósito, é de críticas (muitas), com pouco (quase nenhum) reconhecimento da sua relevância.

Há quem invista, por exemplo, contra sua programação, notadamente da TV comercial, considerando-a nociva, deformadora, alienante e vai por aí afora. Admito que boa parte dos programas não tem nada de positivo e de útil a nos acrescentar. Muitos, sequer, divertem, uma das suas finalidades. Trata-se, todavia, de apressada e preguiçosa generalização. Esses críticos contumazes, que sequer fundamentam suas críticas, dão a entender que nada na televisão presta. Tolice, claro. Até porque, como Nelson Rodrigues caracterizou com tanta felicidade, “toda generalização é burra”. Será que esses ferrenhos opositores passariam, já não digo a vida toda, mas um único e reles dia sem televisão? Duvido!

Há já bom tempo, não dependemos mais da “ditadura” das chamadas TVs comerciais. Com o advento dos canais a cabo, há opções para todos os gostos e necessidades. É certo que as assinaturas são relativamente caras e, por isso, não são acessíveis a todos os bolsos. Paciência! Mas quem se dispõe a pagar (e pode), tem ao seu dispor não apenas cinco ou seis emissoras, mas algumas centenas delas. Sempre haverá um punhado delas para satisfazer suas preferências e necessidades.

Confesso, e sem exageros, que aprendi, com a TV a cabo, muito mais do que em anos freqüentando escolas e universidades. Assisti documentários, muito bem produzidos e expostos, sobre assuntos do meu interesse que jamais supus que um dia viessem a ser exibidos na tele3visão. Mas foram. E ampliaram meus horizontes mentais. E melhoraram (e muito) a minha formação cultural.

Márcia observa a propósito desse “olho de vidro” mágico, que amplia nossa capacidade de visão do mundo: “É difícil fazer um julgamento moral. Ela (a televisão) é muito diversificada. A TV é um objeto de uso doméstico que vem mexer com a capacidade das pessoas de ver as coisas. Se torna prejudicial ou não a partir da maneira como ela apresenta os seus conteúdos”. Cabe, a cada telespectador, avaliar o que, do que é veiculado, lhe será útil e o que poderá, caso não tenha e não exerça senso crítico, lhe ser prejudicial.

Existe uma presunção, que considero pernóstica e até ofensiva, de que “todas” as pessoas precisam ser tuteladas em suas preferências e atos e que, se não o forem, farão bobagens. Há, de fato, quem não tenha tirocínio para distinguir o bem do mal. Esses, todavia, são e serão sempre assim com televisão ou sem ela. Seu problema está na educação (ou, para ser preciso, na falta ou na carência dela).

Márcia Tiburi ressalta um dos objetivos do seu ensaio, talvez o principal (todavia, não o único). Afirma: “A proposta do livro é fazer com que as pessoas questionem o que assistem e percebam em que experiências estão envolvidas. É a de oferecer-lhes um conhecimento. O que é transmitido pela TV é produzido à distância, por desconhecidos. Quero que os telespectadores se perguntem: será que isso tem a ver comigo?”.

Esse questionamento, aliás, deve ser feito não apenas em relação à televisão, mas a tudo o que lemos, vemos ou ouvimos. É o exercício pleno da racionalidade e do livre-arbítrio. Você considera determinado programa nocivo e atentatório à moral? Não o assista! Use o instrumento maior de “censura” ao seu dispor: o controle-remoto. Mude de canal, em busca do que mais lhe convenha. Você não encontra em nenhuma das centenas de emissoras (coisa raríssima de ocorrer) nada que considere útil ou pelo menos interessante? Desligue o receptor. Mas utilize seu senso crítico com critério. Pense com sua cabeça. Não se deixe levar por ninguém. Cada um sabe de si.

Para quem não conhece a autora de “Olho de vidro – A televisão e o estado de exceção da imagem”, informo que ela é graduada em filosofia e artes pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É professora do curso de pós-graduação em Arte, Educação e História da Cultura da Universidade Mackenzie. Mas suas habilidades vão além disso tudo. Márcia é, por exemplo, também artista plástica. E, claro, escritora, autora de vários livros, (mais de dez) como os romances “Magnólia” (que foi finalista do Prêmio Jabuti) e “A mulher de costas” (que junto com “O manto” e “Ornitomance das Berenices” compõe a trilogia “Íntima”), além, claro, de obras da sua especialidade, a filosofia. É, ainda, editora da revista “Trama Interdisciplinar” e colunista da “Cult”

Encerro estas reflexões com a definição de Afonso Borges, idealizador do blog “Sempre um papo”, sobre esse mágico “olho de vidro” que tanta influência exerce em nosso tempo: “Como olho eviscerado, a televisão faz parte da história evolutiva da visão. Antes de ser parte da mídia, de ser meio de comunicação de massa, é, do ponto de vista de uma abordagem ontológica, mecanismo de visão que nasceu no tempo da imagem técnica tornando-se seu órgão fundamental. Neta da fotografia, filha do cinema e do rádio, a TV é, no sistema de administração do sensível, o mecanismo poderoso e até mesmo a lógica que comanda o mundo da experiência visual definindo-a como televisual”.

E, arremata: “Assim como as artes da visão, da pintura ao cinema, foram um posicionamento autoconsciente dos recursos visuais e sua expressão, enquanto não deixaram de ser intervenções no ato de ver, a televisão precisa ser interpretada do ponto de vista da história da visão. As ciências da comunicação dedicam-se a entendê-la, mas é preciso cada vez mais inseri-la no campo dos Estudos Visuais, compreendendo-a no contexto da experiência estética tendo em vista que esta conexão com a estética determina o que nela é política”. Concordam? Não há como discordar.

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