Pedro J. Bondaczuk
Entre as manifestações de racionalidade humana, que servem de distintivo entre o homem e os demais animais, duas ganham especial relevância: as ciências e as artes. Ambas implicam em criação, mais especificamente em "invenção" e exigem que o autor tenha preparo intelectual para exercê-la, o que pressupõe um valor ainda mais elevado, posto que básico: a educação. Mas apenas isso não basta. É insuficiente que o artista ou o cientista estejam com a cabeça cheia de conceitos abstratos, se não souberem o que fazer com eles.
No caso das artes, é preciso que o indivíduo seja dotado, sobretudo, de sensibilidade e que conte com aguçado senso de observação. O poeta português Fernando Pessoa, em um de seus livros, faz longas digressões sobre estas duas vertentes da razão, com observações precisas e originais.
Claro que como artista, na qualidade de escritor, opta, em suas apreciações, pelas artes. Afirma que se trata da manifestação mais legítima da criatividade, por partir virtualmente do nada, quando muito de um retalho de idéia. Já a ciência tem todo um arcabouço de leis fundamentais que regem a natureza, sem o conhecimento das quais o cientista nada poderá fazer. Mas o pesquisador científico tem onde se apoiar. Conta com um ponto de partida.
Para tornar o raciocínio mais claro, Pessoa estabelece a diferença entre as disciplinas. "A Ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são. O essencial na arte é exprimir, o que se exprime não tem importância". Seu âmbito, portanto, não é a precisão. É, sobretudo, o senso estético, a noção do belo, a sugestão dele mesmo onde não exista.
O campo de atuação do artista, "pastor de fantasias", quase sempre é o improvável, o imponderável, o impossível. Mas dessa abstração, mediante a utilização de signos, de símbolos, de sinais, consegue fazer o concreto: a obra de arte.
O fundador da Soka Gakkai, o venerável educador Tsunessaburo Makiguti, em seu profundo livro "Educação para uma Vida Criativa", enuncia um sistema hierarquizado de valores, na forma de uma pirâmide, que enriquece o ser humano e lhe dá transcendência e grandeza. Na base, coloca aqueles de caráter estético. Ou seja, os que se valem dos sentidos, os sensoriais, ligados a partes isoladas da nossa existência individual. São os que tratam da beleza. Caracterizam a arte. Mas afinal, o que é o belo? O conceito é bastante vago e às vezes até discutível. O que é bonito para mim pode não ser para outras pessoas e vice-versa.
A escritora francesa Nathalie Sarraute, em entrevista publicada no suplemento "Mais!", do jornal "Folha de S.Paulo", em 28 de julho de 1996, pergunta: "O que é beleza?". E a seguir complementa: "A beleza responde a algo de muito acadêmico. Trata-se antes de procurar uma determinada sensação, de ficar o mais perto possível dela e depois exprimi-la, fazê-la viver, transmiti-la por meio da escrita". Neste caso, tratava especificamente da literatura: poesia, romance, novela, conto ou ensaio. A beleza pode ser expressa de muitas outras formas artísticas, como a pintura, a escultura, a música, o teatro etc.
Makiguti enfatiza que, "como forma de valor, o valor estético ... não pode exigir preocupação excessiva, pois o sentido estético de maravilha se limita à periferia da existência humana, tangenciando as faculdades perceptivas como sensação agradável ou observação encantadora, nunca fazendo valer seus direitos na consciência humana de modo a nos colocar na defensiva". E prossegue: "Apesar dos chamados belos feitos, como ações merecedoras de admiração, parecerem se encaixar melhor na categoria de valor moral, muitas vezes nos percebemos cativados por histórias e acontecimentos desprovidos de qualquer relação com a moralidade. Assim, a literatura, a ficção e a não ficção passam à posteridade pelo mero prazer de se ler ou ouvir".
No topo da sua pirâmide, o mestre situa os valores morais, ou seja, os ligados à existência grupal coletiva. E completando o conjunto, enumera os chamados "de benefício", que são aqueles pessoais, ligados à existência individual orientada para si mesmo.
O objeto de nossa reflexão hoje é a estética. São as artes e como elas promoveram, promovem e podem promover a evolução da racionalidade humana. Na sociedade utilitarista atual, essa manifestação de criatividade do homem é encarada por muitos, senão pela maioria, como coisa supérflua. Outros transformaram-na em outra classe de valor, a de cunho econômico, pelo que pode render aos seus autores ou, no mais das vezes, meros detentores, em termos de dinheiro.
A arte é vista, com muita boa vontade pela maioria das pessoas como um gosto, um "hobby", um passatempo. Veja-se o que está acontecendo com a poesia, cujos livros são cada vez menos consumidos e, por conseqüência, editados. No entanto, dos vários gêneros literários existentes, é o mais nobre e de mais difícil manejo.
O verdadeiro valor da arte, no entanto, não está no aspecto econômico, embora haja toda uma indústria orbitando ao seu redor. Ela é, no entender de Fernando Pessoa, "a auto-expressão lutando para ser absoluta". É ela, "e não a História", a verdadeira "mestra da vida". Por pior que seja uma obra, no seu aspecto formal, ainda assim brilha e se justifica se consegue despertar no espectador senão contemplação, pelo menos reflexão ou emoção.
"Uma obra de arte é...em sua essência uma invenção com valor", diz Fernando Pessoa. "Se não for invenção, o valor permanece a quem inventou; se não tiver valor não será obra de arte, pois que importa inventar o que não presta?". Na maior parte das vezes, o artista tem, como ponto de partida do seu trabalho, objetos e experiências pré-existentes.
Um escritor, por exemplo, na criação de um personagem para um romance, conto, novela ou peça teatral, ou, não esqueçamos, de um roteiro de cinema, utiliza-se de características físicas e/ou psicológicas de pessoas que conhece ou conheceu. Ao preparar um cenário para o enredo de uma história, pesquisa vários ambientes, estilos e formas de decoração. Tem cuidado para que haja coerência quanto à moda da época em que a trama que elaborou se desenvolve.
Ou seja, lança mão daquilo que o cerca. Usa o que existe ou que existiu. Esse recurso vale tanto para pessoas, quanto para coisas. Ou para fatos, por que não? Mesmo quando projeta seu enredo no futuro, "cria" cenários, personalidades e experiências transformando o já existente. E nem por isso está deixando de fazer arte.
Um artista plástico, ao pintar uma tela, pode tomar como modelo uma paisagem que o impressionou, ou pegar alguém, ou algum objeto, como modelo. Não precisa --- e ultimamente não o faz --- reproduzi-los como são. Projeta-os em seu quadro como os "sente". O escultor age da mesma forma. O importante não é o que inspirou o artista. Não é como surgiu a idéia original. O que conta é a forma com que ele a trabalhou. É o toque de inventividade que colocou na obra. O mesmo se aplica à música, composta com sons pré-existentes, que no entanto ganham harmonia e beleza diante do engenho do compositor.
"Ao contrário da invenção prática, que é uma invenção com valor de utilidade, e da invenção científica, que é uma invenção com valor de verdade, a obra de arte é uma invenção com valor absoluto", acentua Fernando Pessoa. E conclui: "A arte é a notação nítida de uma impressão errada (falsa), (a notação nítida duma expressão exata chama-se ciência). O processo artístico é relatar essa impressão falsa de modo que pareça natural e verdadeira". Pense nisso, precioso e paciente leitor.
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