Pedro J. Bondaczuk
A Rede Globo realiza, amanhã, no Gigantinho, em Porto Alegre, a segunda eliminatória do “Festival dos festivais” e se espera que o nível seja um pouco superior, em termos de qualidade das composições concorrentes, ao verificado na fase anterior, desenvolvida no Recife. A expectativa é por músicas que não copiem as linhas do chamado “rock pauleira” (efeito retardado,. Mas já esperado do “Rock ‘n Rio” e por letras que pelo menos comuniquem alguma coisa ao ouvinte e não sejam meros jogos de palavras, sem conteúdo ou significado. Ou seja, que sejam mais artísticas e menos comerciais.
Mas não é bem da eliminatória de amanhã que desejamos comentar, mas sobre o excelente programa de apoio (que vai ao ar mensalmente) apresentado domingo passado, na Globo, abordando aspectos os mais variados de antigos festivais e que versou sobre a influência da Censura sobre a evolução da MPB nos idos de 1968. Intitulado “Sinal fechado”, recordou um período de grande ebulição contestatória, não somente no Brasil, mas em todo o mundo. O “gancho” usado foi o Festival Internacional da Canção, promovido pela emissora naquele ano, e principalmente a dissintonia entre o veredito do júri e a preferência popular, destacadamente na parte nacional daquele FIC.
Até hoje as pessoas não entendem o que havia de tão errado na célebre composição de Geraldo Vandré “Pra não dizer que não falei de flores”, para despertar a oposição , e em alguns casos até a ira, das autoridades. O fato é que essa canção, mais tarde transformada em hino contestatório, valeu inúmeros dissabores ao seu autor. E causou uma coisa que atualmente seria considerada verdadeira heresia, mas que na oportunidade, no calor das paixões deflagradas, de fato aconteceu. Uma imensa vaia do público que superlotava o ginásio do Maracanazinho, no Rio de Janeiro, para a dupla Chico Buarque e Antonio Carlos Jobim. Até hoje é impossível de se saber se a manifestação de desagrado foi dirigida à canção “Sabiá”, vencedora da fase nacional daquele festival (de um lirismo simplesmente comovedor), se aos dois compositores (que nem mesmo com a maior das más vontades poderiam ser considerados cooptados pelo sistema) ou se ao corpo de jurados. Ao nosso ver, ela foi injusta, mas explicável.
Para se compreender o que se passou naquele FIC, é necessário entender aquele período, marcado pela ebulição mundial. Foi em 1968 que a Checoslováquia começou a viver um esperançoso processo de liberalização, implantado por Alexander Dubcek em 5 de abril, conhecido por “Primavera de Praga”, esmagado pelos tanques soviéticos em 20 de agosto. Também nessa época ocorreu o levante estudantil na França, que viveu oito dias de loucura com a tomada da Sorbonne pelos universitários, a ocupação de fábricas pelos seus operários e com as barricadas no bairro boêmio de Paris, o “Quartier Latin”, fatos esses acontecidos a partir de 2 de maio, estendendo-se até o dia 13.
No Vietnã, os norte-americanos intensificavam suass ações militares, chegando, em determinado momento, a contar com até meio milhão de soldados para combater os esfarrapados “vietcongs” e seus aliados, os norte-vietnamitas de Ho-Chi-Mihn. Além disso, os EUA enfrentavam problemas internos de discriminação racial, que culminaram no assassinato, no dia 4 de abril de 1968, do líder negro dos direitos civis, o pastor Martin Luther King, seguido, dois meses e um dia depois, da estúpida morte do senador Robert Kennedy, em plena campanha presidencial.
A contestação e a violência varriam o mundo, pondo em cheque os valores estabelecidos após a Segunda Guerra Mundial, especialmente nas camadas mais jovens. E o Brasil, onde se colocava? O País vivia um período de extrema coação, com os intelectuais virtualmente amordaçados, impedidos de expressar suas inquietações e propostas e a população silenciada em suas reivindicações e protestos. Poucos canais restavam para a liberação das tensões acumuladas. Entre estes, estavam os festivais.
Não é de se estranhar que eles se multiplicassem tanto no período. Iam desde os promovidos por universidades e por clubes, aos que obtinham maior repercussão e ofertavam prêmios mais tentadores, como os patrocinados pelas emissoras de TV, no caso a Excelsior, a Record e a Globo. Os compositores passaram a ser a voz dos jovens, daí porque a platéia literalmente exigia que as canções contestatórias fossem sempre vencedoras. Mesmo que elas não fossem as melhores, como no caso da composição de Vandré. Essa também foi uma das razões porque boas canções, como “Saveiro”, de Dori Caymmi, por exemplo, recebessem vaias impiedosas do público e viessem a magoar tanto aos que as recebiam. Afinal, o artista é dotado de sensibilidade exacerbada, razão pela qual suas obras transmitem tanto sentimento. É um ser humano mais carente de aprovação e de carinho populares do que os demais. Manifestações unânimes de desagrado ferem profundamente a sua vaidade e causam mágoas, às vezes irreversíveis. Por isso eles são o que são: artistas.
Hoje os festivais têm uma função diferente. É a de servir de mera “vitrine” para os compositores mostrarem suas criações. Por isso a participação popular não é tão entusiástica quanto outrora. E nem mesmo tão importante. O evento destina-se mais a especialistas. E por essa razão a crítica recebeu tão mal a eliminatória do Recife, que mostrou que em termos de música popular, nada de novo há para ser mostrado. Fica a expectativa de que a fase de Porto Alegre apague essa primeira impressão, tão negativa, do “Festival dos festivais”. Tomara que sim.
(Comentário publicado na coluna “Vídeo”, página 20, editoria de Arte e Variedades do Correio Popular, em 23 de agosto de 1985).
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