Wednesday, May 30, 2012

O dissimulado médico e monstro

Pedro J. Bondaczuk

A confirmação, mediante testes de DNA, ocorrida em 1992, de que as ossadas sepultadas no cemitério do Rosário, no município de Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo, eram, mesmo, do criminoso de guerra nazista Josep Mengele, como se pensava tão logo foram exumadas, frustrou muitas pessoas. Ficaram frustrados, sobretudo, seus implacáveis “caçadores”, que tinham como questão de honra sua captura, para que fosse julgado pelos vários crimes que cometeu durante a Segunda Guerra Mundial.

O chamado “Anjo da Morte” do campo de extermínio de Auschwitz morreu afogado, em 7 de fevereiro de 1979, em uma praia de Bertioga, no litoral paulista. Seus ossos foram exumados em 1985 e identificados por uma equipe de legistas do Instituto Médico Legal de São Paulo, comandada por Fortunato Badan Palhares. O resto de dúvidas que ainda persistia, a respeito da identidade daqueles restos mortais se dissipou face o resultado do teste de DNA. Dessa forma, um dos criminosos mais procurados do mundo (se não o mais) livrou-se do julgamento dos homens, não tendo que pagar por seus hediondos crimes.

O leitor mais jovem, que não era nascido quando os delitos desse e de tantos outros criminosos de guerra foram cometidos, pode perguntar (e muitos me perguntam): “qual a razão de tamanho empenho na tentativa de capturar Josep Mengele?” Até se entende a reação dessas pessoas que, no entanto, mudam imediatamente de postura quando informadas sobre o que, realmente, esse monstro fez. Para quem tem hoje, por exemplo, menos de 30 anos, o que ocorreu no mundo – notadamente na Europa – durante o período da Segunda Guerra Mundial, é mais um dos tantos “tópicos” de História, que têm que decorar, não raro apressadamente, antes de alguma sabatina da matéria.

Quem é tão mal esclarecido (e estes ascendem aos milhões, mundo afora), costuma perguntar, quando o tema vem à tona: “Quem foi, afinal, esse Mengele? O que ele fez de tão terrível para ser objeto de tamanha perseguição?”. Até certo ponto, essa indagação procede. Afinal, o nome desse médico sequer consta da maioria das enciclopédias. Durante anos e anos, passada a fase dos julgamentos do pós-guerra no tribunal de Nuremberg, e até o início de 1985, quando da exumação da ossada em Embu das Artes, raramente foi mencionado nos veículos de comunicação. Afinal, querem saber essas pessoas, “o que esse sujeito fez de tão ruim?”.

Apenas duas informações seriam suficientes para esclarecer essas dúvidas e justificar o empenho em localizá-lo, prendê-lo e levá-lo às barras da justiça. A primeira é que Josep Mengele foi o responsável pela morte de 400 mil pessoas, a maioria judeus, adultos, mulheres, crianças e idosos, no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia. A segunda, tão ou mais grave que a primeira, está ligada à sua profissão, a Medicina. Ele manchou, descumpriu, ridicularizou e pisoteou o “juramento de Hipócrates” e usou os conhecimentos médicos que adquiriu não para curar pessoas e salvar vidas, conforme jurou fazer ao receber o diploma.

Em vez disso, aplicou seu talento para fazer exatamente o oposto. Fez, de seres humanos indefesos e frágeis, cobaias para hediondas experiências, notadamente genéticas, dessas que não se fazem hoje sequer em animais criados para esse fim, infligindo a suas vítimas indescritíveis sofrimentos, comprovados por sobreviventes, cujo testemunho é um desfile de horrores. É inconcebível que um ser humano tenha feito o que esse homem fez a outros seres humanos. Mengele, portanto, traiu não somente a Medicina, como a própria humanidade.

O que assustava nesse indivíduo – personalização exata do célebre personagem de ficção de Robert Louis Stevenson em “O médico e o monstro” –, conforme o testemunho de sobreviventes de Auschwitz, era uma espécie de dupla personalidade. “Ele sabia ser agradável e costumava ser gentil com as vítimas: oferecia doce às crianças e acariciava os cabelos das menininhas. Mas, no instante seguinte, voltava a ser o ‘Anjo da Morte’, capaz de presenciar assassinatos em massa, com um sorriso nos lábios e entoando canções românticas”, relata uma sobrevivente, na época com sete anos de idade e que hoje vive em Israel.

O maior tormento das pessoas que passaram por suas mãos e que ainda estão vivas (todas na faixa de mais de oitenta anos), com as mentes irremediavelmente marcadas por tremendos traumas e corpos horrivelmente mutilados, é a lembrança de suas visitas diárias às “enfermarias” de Auschwitz. Nestas rondas, retirava os prisioneiros doentes, aqueles que estivessem mais debilitados.

Para evitar alarme, com um cinismo impressionante e uma frieza anormal, consolava os aflitos. E aos que eram removidos, mostrava um ar de “bondade” que dissipava temores e dúvidas, prometendo “solução para seus males”. Só não dizia que esta, invariavelmente, se resumia à permanência, por três minutos, sob “os chuveiros” de Ziklon B, veneno utilizado na agricultura, usado nas câmaras de gás dos campos de extermínio nazistas para assassinatos em massa. Era a morte irremediável, sentença absolutamente irrecorrível. Para não deixar vestígios dos hediondos crimes, os corpos eram incinerados nos fornos crematórios, acesos dia e noite, reduzindo milhares e milhares de cadáveres por dia a cinzas, num absurdo e louco processo “industrial” de homicídios.

Um episódio do “Anjo da Morte” muito lembrado foi narrado pelo jornalista José Antonio Pedriali, do “O Estado de São Paulo”, em artigo publicado em 10 de março de 1985 (época em que ele foi destacado como enviado especial do jornal ao Paraguai), intitulado “Mistério, mito. Onde está Mengele?”, em que diz: “Na primeira vez que ele entrou no bloco infantil, em 15 de janeiro de 1944, dividiu por idade as quase cinco mil crianças e, em seguida, mandou-as encostarem-se na parede, onde haviam sido pintadas marcas determinando a altura mínima que julgava ideal para cada idade. As que não atingiam essa marca eram imediatamente levadas às câmaras de gás”.

Tudo isso (e muito mais) foi feito sem gestos dramáticos ou ameaçadores, sem gritos, sem ofensas verbais carregadas de ódio, sem violência física pessoal, atitudes normais dos soldados nazistas encarregados dos campos de concentração. Foi feito friamente, cinicamente, impessoalmente e, pode-se dizer, até, “gentilmente”. Bela gentileza! Essa frieza, essa dissimulação, essa crueldade e essa “alegria” e mórbido prazer face o sofrimento alheio é que fizeram de Josep Mengele o homem tão odiado, o mais procurado do mundo ao cabo da Segunda Guerra Mundial.

Estes foram os principais motivos, aliás, pelos quais tantos caçadores de nazistas torceram fervorosamente para que as ossadas exumadas no cemitério do Embu, com documentos falsos pertencentes ao austríaco Wolfgang Gerhard (o verdadeiro retornou para a Áustria alguns anos antes), não fossem do “Anjo da Morte” de Auschwitz. Todavia... eram. Foi irônico demais o fato de um criminoso desse porte ter escapado de responder por seus crimes hediondos e atos bestiais perante a justiça dos homens. A História, não raro, prega esse tipo de peça.

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