Pedro J. Bondaczuk
O escritor, amiúde, se vê confrontado com temas sobre os quais não gostaria jamais de escrever, que lhe causam repugnância e horror, mas que, até por um imperativo moral, é desafiado a enfrentar de peito aberto. Pode, é claro, ignorá-los simplesmente. Pode tocar sua vida, como se aquilo que o repugnou ou assustou sequer existiu. Ou de que nunca tenha tomado conhecimento do assunto. Se o fizer, todavia, ficará mal com sua consciência. Para ele, não pode haver tema tabu, até em respeito ao que é, em última instância, seu verdadeiro “patrão”, seu implacável árbitro, cujo julgamento é o único que lhe importa: o leitor.
Um desses assuntos que me repugnam e que detesto abordar é o que se refere a um dos períodos mais dramáticos e mais sangrentos da história da humanidade: a Segunda Guerra Mundial, com seu desfile de horrores e de hediondos personagens, alguns tão insanos que, se comparados, por exemplo, a Nero, Calígula e tantos outros loucos homicidas, estes últimos poderiam ser tomados como paradigmas de “bondade”, ombreando-se a Madre Teresa de Calcutá ou a São Francisco de Assis. Claro que é exagero meu (e que exagero!). Mas dá a exata dimensão de quão maldosos foram esses terríveis personagens.
A Segunda Guerra Mundial escancarou tudo o que de pior possa haver no espírito e, sobretudo, no comportamento humano. Campos de concentração, “matadouros” de pessoas, em que inocentes eram assassinados “industrialmente” e reduzidos a cinzas, em fornos crematórios, que funcionavam ininterruptamente; experiências médicas que se feitas em cobaias animais já seriam repugnantes, imaginem em mulheres, crianças e bebês e vai por aí afora. Até bomba atômica foi usada nesse conflito contra populações inocentes, num assassinato coletivo absurdo e surreal e que nunca sofreu a devida condenação mundial que deveria sofrer. Por que? Porque esse delito contra a humanidade foi cometido pelo lado vencedor. É assim que funciona a paupérrima justiça humana.
Personagens assustadores, que ficcionista algum conseguiria sequer remotamente imaginar, por mais criativo e imaginoso que fosse, por seu grau de insânia e de perversidade, existiram, de fato, e suprimiram a vida (ou a desgraçaram) de milhões e milhões de indefesos prisioneiros. Um dos mais cruéis, cínicos e covardes foi, sem dúvida, Josep Mengele, conhecido, não sem razão, como “Anjo da Morte” do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, de trágica memória para a humanidade. E por que escolhi justamente esse indivíduo, sem moral e sem o mínimo álibi que desculpe e justifique suas nefastas ações, entre milhares de tantos outros seres monstruosos? Porque as lembranças mais apavorantes, dos escassos sobreviventes dos campos da morte, são suscitadas justamente por ele.
Outro motivo que me leva a tratar desse indivíduo é o que em jornalismo chamamos de “gancho”. Ou seja, o oportuno pretexto para se escrever e publicar determinada reportagem ou artigo, mediante contextualização. Isso, aliás, nem é exclusividade de jornalistas. Escritores, amiúde, se utilizam desses pretextos para escrever seus livros. Neste caso específico, o “gancho” é o fato de Josep Mengele ter morrido em 7 de fevereiro de 1979, afogado em uma praia de Bertioga, no litoral paulista.
Outro motivo que me levou a escrever, à revelia da minha mais íntima vontade, sobre um tema que me incomoda e deprime tanto é o de desmistificar um quê de “romantismo” com que determinados adolescentes, despreparados (ou desmiolados?) encaram o nazismo, que, claro, nunca conheceram em sua verdadeira essência. Há já algum tempo, abundam grupos que se auto-intitulam neonazistas, como se essa opção fosse uma glória, algo que merecesse apaixonada adesão. Agem assim, claro, apenas por modismo. Mas... Esses moços precisam conhecer a fundo, com todos os escabrosos e hediondos detalhes, o que foi essa malévola ideologia e os monstros que a engendraram e defenderam, quase destruindo o mundo e a civilização.
Josep Mengele nasceu na bucólica e aprazível cidadezinhas alemã de Guinzburg, às margens do Rio Danúbio, no estado da Baviera, em 16 de março de 1911. Sua família gozava de muito prestígio e, quando jovem estudante, ninguém diria que aquele moço talentoso e promissor, que desde cedo mostrou vocação para a medicina, se tornaria o monstro que se tornou. Essas coisas são rigorosamente imprevisíveis. O pai, Karl, era industrial, proprietário da “Karl Mengele und Sohen”, próspera fábrica de equipamentos agrícolas, a maior empregadora da região.
Josep formou-se em Frankfurt, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial. Seus contemporâneos dizem que era aluno dos mais aplicados, posto já fosse onipresente ativista político, até mesmo fanático pelo nazismo. Como tal, tinha, em Adolf Hitler, uma espécie de “deus”. Estava disposto a fazer de tudo, a sacrificar o que (e quem) mais gostasse, se isso fosse necessário, pelo partido, que era, então, sua obsessão.
Seu fanatismo ideológico aproximou-o de outro hediondo “monstro” nazista, Adolf Eichmann, do qual não tardou em se tornar o braço direito, um dos homens de sua irrestrita confiança. Foi por suas mãos, aliás, que parou na absurda e hedionda “fábrica da morte” em que o campo de concentração de Auschwitz foi transformado.
Recebeu autorização para realizar, ali, experiências médicas, na verdade genéticas – objetivando “purificar” a raça ariana, que no entender daqueles celerados malucos era perfeita, superior a todas as outras, e por isso deveria dominar o mundo – tendo por “cobaias” prisioneiros judeus, que posteriormente seriam eliminados e teriam os restos mortais reduzidos a cinzas para não restarem vestígios dessas macabras “pesquisas” e estas seriam espalhadas nas lavouras, para servirem de adubo. Tudo fora meticulosamente planejado e pensado, como se fosse uma próspera indústria qualquer.
Adolf Eichmann foi o mentor do que passou para a história como a “Solução Final”. Ou seja, o Holocausto, a política de extermínio físico de toda uma etnia, a judia, para que dela não restasse um único espécime e assim ela não viesse a se misturar com os “arianos” e não os “contaminasse”. Coisa de doido, não é mesmo? Esse hipercriminoso, pelo menos, foi devidamente justiçado. Foi capturado, em 11 de maio de 1960, em Buenos Aires, onde vivia sob falsa identidade, por agentes do serviço secreto israelense, o Mossad, sob a liderança de Raphael Eitan.
Conduzido a Israel, Eichmann foi julgado em 1961 e condenado à morte (na única sentença capital já imposta a um civil em toda a história desse país). Foi executado, na forca, em 1º de junho de 1962. Seu julgamento foi detalhado pela eminente escritora e filósofa Hannah Arendt, no livro “Eichmann em Jerusalém”, originalmente uma série de reportagens para a revista “The New Yorker”, no qual a autora cunhou e consagrou sua famosa expressão “banalidade do mal”. Já Mengele, por mais caçado que tenha sido, escapou do julgamento e morreu afogado em uma praia de Bertioga, frustrando o compreensível anseio de suas vítimas sobreviventes por justiça, que se fez, ao final das contas, mas por linhas tortas.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment