Arauto musical do sertão
Pedro J. Bondaczuk
A música popular brasileira é farta em revelações – de cantores, compositores e instrumentistas excepcionais – que, quando menos se espera, surgem no cenário musical, conquistam seu espaço, se impõem e alguns até viram mitos. É certo que isso ocorre praticamente em todas as atividades e profissões. Todavia, meu foco, hoje, é a MPB. Mais especificamente, é um nordestino que se tornou paradigma, sinônimo de determinado ritmo musical que, antes dele, ostentava apenas caráter regional e que, com ele, passou a ser conhecido e apreciado nacionalmente.
Dos vários centenários a serem comemorados em 2012, o desse simpático (diria carismático) artista popular é um dos que mais têm a ver comigo (e com certeza com milhares de pessoas país afora). Refiro-me a Luiz Gonzaga – que por causa do seu expressivo e simpático rosto redondo, recebeu o apelido de “Lua” – nascido em 13 de dezembro de 1912 em Exu, cidade do sertão pernambucano. Manteve-se na crista do sucesso por, praticamente, 43 anos, desde o lançamento de seu primeiro disco pela gravadora RCA Victor, em 1946, até sua morte, ocorrida no Recife, em 2 de agosto de 1989.
Depois da sua morte, o ritmo que o consagrou, e que Luiz Gonzaga popularizou, declinou e voltou ao estado em que se encontrava antes do cantor e compositor tê-lo revelado, por inteiro, nos grandes centros do Sul e Sudeste, notadamente São Paulo e Rio de Janeiro. Refiro-me ao baião, do qual o artista nordestino tornou-se, de fato e de direito, “rei”.
Poucos intérpretes – quer no Brasil, quer no mundo – tiveram um repertório de sucessos tão vasto quanto esse músico, que começou a carreira como apenas instrumentista, tocador de sanfona na zona do meretrício da então capital do País. Foram mais de 90 baiões, muitos dos quais se tornaram clássicos da MPB, como “Asa Branca”, “Seridó”, “Juazeiro”, “Que nem jiló”, “Baião de dois” e “Respeita Januário”, entre tantos e tantos e tantos outros êxitos de execução e de vendas.
O pitoresco é que, no início de carreira, Luiz Gonzaga ignorou o baião, achando que essa tradicional expressão musical nordestina não iria agradar as sofisticadas platéias sulistas. Na zona, por exemplo, seu repertório era constituído, principalmente, de choros, sambas, foxtrotes e, notadamente, de vários ritmos estrangeiros, tão a gosto dos brasileiros no início da década de 40 do século XX. Além de tocar nesses inferninhos, apresentava-se em programas de calouros, e com o mesmo tipo de música, por isso era mais um entre tantos. Não se destacava e nem chamava a atenção de ninguém. Mas, teimosamente, persistia.
Sua sorte começaria a mudar, todavia, em 1941. Em determinada ocasião desse ano, inscreveu-se para cantar no programa de calouros mais popular do país da época, comandado pelo ranzinza Ary Barroso, que era implacável com os maus cantores e maus músicos. Justamente neste!!! Era uma temeridade, como se vê. Mas Luiz Gonzaga resolveu correr o risco, que foi ainda maior ao escolher o que iria cantar. Cantaria (e pela primeira vez, pois até então, era apenas instrumentista e de um instrumento nem tão popular assim nos meios musicais mais sofisticados, a sanfona) uma composição de sua autoria.
Para sua surpresa, ao terminar a execução de “Vira e mexe”, foi aplaudido de pé pela platéia e elogiadíssimo por Ary Barroso. Pode-se afirmar que, na prática, sua carreira artística começou ali. O bom desempenho no programa de calouros valeu-lhe um contrato com a gravadora RCA Victor. Na sequência, veio a contratação pela Rádio Nacional. Dali para a fama, foi mera questão de tempo.
Luiz Gonzaga foi, dos tantos artistas que tive a oportunidade de conhecer (e, com alguns, convivi até), que mais me impressionaram. Principalmente por sua simplicidade e pela amabilidade. Conheci-o pessoalmente no intervalo de um show que ele apresentou na sede de um clube de futebol da cidade de São Caetano do Sul, no Grande ABC paulista, onde então eu residia. Foi na Vila Gerti, bairro que abrigava a comunidade nordestina do município. Fui convidado e nem sei por que aceitei, porquanto, na época, o baião estava longe de figurar entre minhas preferências musicais. Mas fui. E nunca me arrependi. Aliás, pelo contrário.
O tal show ocorreu no final de 1963. Na oportunidade, eu já era radialista e vislumbrei uma oportunidade de obter entrevista exclusiva com o então já consagrado “Rei do Baião”. Intimamente, duvidava que conseguiria. Mas... no verdor dos 20 anos, eu era um jovem ousado (diria atrevido) e não desistia de nada sem antes tentar. E o Gonzagão me surpreendeu. Não só aceitou ser entrevistado, como de quebra, após o show, ficamos papeando por duas horas ou mais, bebericando alguns guaranás bem gelados (a noite era quente como quê), falando das respectivas vidas, preferências, projetos e, principalmente, de trivialidades, dessas que os amigos falam sem que se cansem.
Ao nos despedirmos, como se fôssemos íntimos de longuíssima data, fui presenteado com dois LPs, autografados (sem dúvida) por ele. E, desde então, passei a ser não apenas seu fã incondicional, como apreciador do baião, após ouvir umas cinqüenta composições ou mais desse rei, cuja majestade, jamais questionada ou contestada, nunca foi motivo de soberba. Pelo contrário. Depois desse show, sempre que ele se apresentava em São Paulo, eu fazia questão de comparecer. E de pelo menos dar-lhe um abraço afetuoso, no que sempre fui retribuído.
Há, entre os críticos musicais, certa controvérsia em torno do baião. Há quem reporte sua origem à França, a Bayone e sustente a tese que o nome do ritmo derivaria da corruptela da denominação dessa cidade. Bobagem. Trata-se de dança popularíssima do Nordeste, pelo menos desde o século XIX, derivada de um tipo de lundu, o “baiano”. É, portanto, corruptela, sim, mas não de “Bayone”, mas de “baiano”. Sua execução característica utilizava, apenas, sanfona. Luiz Gonzaga, porém, introduziu dois novos instrumentos: a zabumba e o triângulo.
Graças ao Gonzagão, o baião ganhou a adesão de outros cantores populares (como Marlene, Emilinha Borba, Ivon Curi, Carmem Miranda, Isaurinha Garcia, Ademilde Fonseca, Dircinha Batista etc.). Nenhum deles, claro, com o mesmo carisma e o mesmo sucesso do querido “Lua” nessa sua seara. A enciclopédia eletrônica Wikipédia destaca, a propósito: “Se Gonzaga era o ‘Rei do Baião’, Carmélia Alves era tida como a ‘Raínha’, Claudete Soares a ‘Princesa’ e Luís Vieira o ‘Príncipe’”. Como se vê, Sua Majestade tinha a acompanhá-lo uma corte de peso, de muito respeito.
Há tempos eu devia este singelo testemunho público da minha admiração e respeito por este nordestino bonachão, sorridente, bem-humorado e simples, que esbanjou talento e simpatia, sem nunca se “mascarar”. Foi e sempre será, posto que postumamente, sem tirar e nem pôr, o lídimo “arauto musical do sertão”. Dívida, pois, paga, mesmo que numa reminiscência sem a devida e esperada objetividade (nem jornalística e nem literária) da minha parte. Mas pejada, em contrapartida, de sentimentos e de muita emoção. Saudades de você, Gonzagão!!!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk