Guiado por uma estrela
Pedro J.
Bondaczuk
A casa era das mais pobres do
bairro. Seguramente, era, pelo menos, a mais judiada da rua. As paredes
externas tinham a pintura descascada em vários pontos, refletindo falta de
manutenção. Parte do muro lateral havia desabado, mostrando um quintal surpreendentemente
bem-cuidado e limpo, com um pequeno canteiro de flores num lado, uma horta de
proporções médias no outro e um mastro, com as figuras dos santos cultuados em
junho – Santo Antônio, São João e São Pedro – feitas de tecido, já desbotado em
conseqüência da chuva e do sol, ao centro. O portãozinho da frente, de madeira,
estava desconjuntado, apodrecido por falta de pintura e ameaçava se decompor
nas mãos de quem o tentasse abrir.
Fui recebido na entrada da tosca
residência por toda a família em comitiva, vestida de forma simples, porém
asseada, com trajes domingueiros, como se eu fosse a pessoa mais importante do
mundo. Fui recepcionado pelo chefe da casa, um senhor precocemente envelhecido
pelo trabalho e por privações de toda a sorte – era caminhoneiro e passava a
maior parte do ano nas estradas, por este imenso Brasil afora –; por sua
esposa, que aparentava uns 70 anos (depois soube que tinha apenas 55) e por
suas três filhas.
Os filhos, casados, igualmente
caminhoneiros, não puderam vir. Estavam trabalhando. Um, levava uma carga de
eletrodomésticos para Brasília. O outro, fora buscar uma partida de arroz no
Maranhão. As respectivas esposas foram para as casas dos seus pais.
As filhas formavam uma escadinha.
A mais velha, beirava os 25 anos. Tinha problemas mentais e pouco, ou nada,
ajudava na casa. A do meio, havia completado 18 anos recentemente, mas não
estava namorando. Trabalhava como diarista, mas o que ganhava mal dava para a
feira da semana. A caçula faria 13 anos em janeiro e havia arranjado colocação
de doméstica numa mansão do bairro, praticamente em troca, apenas, de casa e
comida.
Como se vê, era uma família
pobre, muito pobre, paupérrima. Seu único patrimônio era o caminhão, cuja
manutenção custava caro, os “olhos da cara”. Havia meses que o dono da casa mal
conseguia cobrir as despesas do veículo. Por isso, a renda familiar era escassa
e nem sempre dava, sequer, para as necessidades mínimas. Soube que estavam com
três meses de aluguel atrasados e que o proprietário já ameaçava entrar com
ação de despejo.
Apesar da pobreza, todavia,
raramente tive a oportunidade de conhecer uma pessoa tão alegre, tão
comunicativa e, sobretudo, tão otimista como aquele humilde caminhoneiro.
Conhecemo-nos num bar do bairro, cerca de seis meses antes desta minha visita à
sua casa. Na ocasião, ele fez questão de pagar-me uma bebida. Conversa vai,
conversa vem, soube que eu era gaúcho. Foi o que bastou.
O homem, embora mineiro de
nascimento, nutria fascinação, diria fanatismo, pelo meu Estado natal. Até seu
sotaque era do Sul. Juraria por todas as juras que era meu conterrâneo. Não
era! Depois disso, todas as vezes que viajava para o Rio Grande, ele me trazia
um pacote de chimarrão. Eu fazia questão de pagar pela encomenda, apesar dos
seus enfáticos protestos. Ocorre que o homem era um exagerado! Eu tinha, em
casa, estoque da erva suficiente para pelo menos dez anos! Afinal, no bairro,
ninguém mais tomava chimarrão. Os amigos que o experimentaram, detestaram. E
para o meu consumo pessoal, um único pacote dava para dois meses ou mais.
Fui surpreendido, na véspera
deste episódio, por um convite, feito com a maior cerimônia, pelo meu novo
amigo. Ele queria porque queria que eu passasse o Natal com sua família. “É uma
casa de pobre, não vai reparar, mas o convite é de coração!”, havia dito, todo
cheio de dedos, ansioso para que eu aceitasse. Aceitei, é claro.
Na época, eu morava sozinho.
Tinha meus verdes 22 anos, trabalhava numa multinacional francesa de Paulínia,
ganhava muito bem e estava me preparando para prestar, em janeiro, vestibular
para Medicina. Não podia, pois, me dar o luxo de passar as festas com meus
pais, que moravam em São
Caetano do Sul. Precisava ralar no estudo. Relutei, fiz-me de
difícil, mas finalmente aceitei seu convite. Afinal, nunca fui dado a luxos.
Entrei na modesta habitação, e os
sinais de pobreza estavam por toda a parte. O interior estava imaculadamente
limpo, é verdade, mas as paredes, com rachaduras em diversos pontos, há anos
não viam tinta. O forro, por sua vez, estava negro em alguns pontos,
notadamente nos cantos, em decorrência de vazamentos, provavelmente causados
por telhas quebradas e não-trocadas. Na sala, onde fui instalado com todo o
conforto, havia uma sólida mesa, cadeiras bastante velhas, mas em bom estado de
conservação, um aparelho de TV, muito antigo, e uma árvore de Natal, tosca, sem
pisca-pisca, que há muito já vira melhores dias.
A ceia foi tranqüila, alegre e
sem-cerimônias, de parte a parte. O cardápio era dos mais frugais. Consistia de
dois frangos assados, arroz branco, e maionese caseira. Mas nunca, ao que me
lembre, comi comida mais gostosa e rica do que essa. A ceia foi aberta com um
aperitivo, uma caninha especial, comprada diretamente num alambique caseiro do
interior de Minas, que desceu macia e quente. Um vinho de garrafão, adquirido
no Rio Grande do Sul, servia de acompanhamento.
Contamos casos e mais casos,
histórias sem fim, das nossas respectivas experiências pessoais. E rimos, rimos
muito, com espontaneidade e descontração, o tempo todo, mesmo quando não havia
motivos para o riso. À certa altura, a pretexto de que precisava estudar para o
vestibular (e precisava mesmo), pedi licença para me retirar. Despedi-me com
afabilidade e emoção dos donos da casa, agradecido por aqueles momentos ímpares
que passei em tão agradável companhia.
Num instante de distração dos
anfitriões, num impulso irresistível, puxei da carteira, tirei todo o dinheiro
que tinha (que era todo o meu décimo-terceiro, dos mais polpudos) e, sem
ninguém perceber, coloquei tudo debaixo de um vaso de vidro, com flores
artificiais, que estava sobre a televisão. A importância daria para cobrir o
aluguel atrasado e ainda sobrar alguma quirera.
Já fora da casa, olhei para o
céu, incrivelmente estrelado daquela noite inusitadamente quente de início de
verão. Sentia-me bem como nunca. Segui cantarolando o “White Christmas”, de
Irving Berlin, pela rua vazia, rumo à minha residência, tomado de uma gostosa,
mas indescritível, emoção, misto de alegria e de nostalgia.
A esta altura, o ar da madrugada
estava fresco. Uma suave brisa batia-me no rosto e assanhava meus cabelos. Ao
longe, ouvia o sino da Igreja de Santa Isabel, convocando os fiéis para a missa
do galo. Subitamente, uma estrela cadente riscou o céu noturno. Seria um
presságio? Não sei! Talvez! Só sei que, passados mais de cinquenta anos,
olhando retrospectivamente todo esse período, hoje tenho absoluta certeza de
que aquele foi o melhor dos Natais que já tive em toda a minha vida...
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