Friday, December 23, 2016

Guiado por uma estrela



Pedro J. Bondaczuk



A casa era das mais pobres do bairro. Seguramente, era, pelo menos, a mais judiada da rua. As paredes externas tinham a pintura descascada em vários pontos, refletindo falta de manutenção. Parte do muro lateral havia desabado, mostrando um quintal surpreendentemente bem-cuidado e limpo, com um pequeno canteiro de flores num lado, uma horta de proporções médias no outro e um mastro, com as figuras dos santos cultuados em junho – Santo Antônio, São João e São Pedro – feitas de tecido, já desbotado em conseqüência da chuva e do sol, ao centro. O portãozinho da frente, de madeira, estava desconjuntado, apodrecido por falta de pintura e ameaçava se decompor nas mãos de quem o tentasse abrir.

Fui recebido na entrada da tosca residência por toda a família em comitiva, vestida de forma simples, porém asseada, com trajes domingueiros, como se eu fosse a pessoa mais importante do mundo. Fui recepcionado pelo chefe da casa, um senhor precocemente envelhecido pelo trabalho e por privações de toda a sorte – era caminhoneiro e passava a maior parte do ano nas estradas, por este imenso Brasil afora –; por sua esposa, que aparentava uns 70 anos (depois soube que tinha apenas 55) e por suas três filhas.

Os filhos, casados, igualmente caminhoneiros, não puderam vir. Estavam trabalhando. Um, levava uma carga de eletrodomésticos para Brasília. O outro, fora buscar uma partida de arroz no Maranhão. As respectivas esposas foram para as casas dos seus pais.
As filhas formavam uma escadinha. A mais velha, beirava os 25 anos. Tinha problemas mentais e pouco, ou nada, ajudava na casa. A do meio, havia completado 18 anos recentemente, mas não estava namorando. Trabalhava como diarista, mas o que ganhava mal dava para a feira da semana. A caçula faria 13 anos em janeiro e havia arranjado colocação de doméstica numa mansão do bairro, praticamente em troca, apenas, de casa e comida.

Como se vê, era uma família pobre, muito pobre, paupérrima. Seu único patrimônio era o caminhão, cuja manutenção custava caro, os “olhos da cara”. Havia meses que o dono da casa mal conseguia cobrir as despesas do veículo. Por isso, a renda familiar era escassa e nem sempre dava, sequer, para as necessidades mínimas. Soube que estavam com três meses de aluguel atrasados e que o proprietário já ameaçava entrar com ação de despejo.

Apesar da pobreza, todavia, raramente tive a oportunidade de conhecer uma pessoa tão alegre, tão comunicativa e, sobretudo, tão otimista como aquele humilde caminhoneiro. Conhecemo-nos num bar do bairro, cerca de seis meses antes desta minha visita à sua casa. Na ocasião, ele fez questão de pagar-me uma bebida. Conversa vai, conversa vem, soube que eu era gaúcho. Foi o que bastou.

O homem, embora mineiro de nascimento, nutria fascinação, diria fanatismo, pelo meu Estado natal. Até seu sotaque era do Sul. Juraria por todas as juras que era meu conterrâneo. Não era! Depois disso, todas as vezes que viajava para o Rio Grande, ele me trazia um pacote de chimarrão. Eu fazia questão de pagar pela encomenda, apesar dos seus enfáticos protestos. Ocorre que o homem era um exagerado! Eu tinha, em casa, estoque da erva suficiente para pelo menos dez anos! Afinal, no bairro, ninguém mais tomava chimarrão. Os amigos que o experimentaram, detestaram. E para o meu consumo pessoal, um único pacote dava para dois meses ou mais.

Fui surpreendido, na véspera deste episódio, por um convite, feito com a maior cerimônia, pelo meu novo amigo. Ele queria porque queria que eu passasse o Natal com sua família. “É uma casa de pobre, não vai reparar, mas o convite é de coração!”, havia dito, todo cheio de dedos, ansioso para que eu aceitasse. Aceitei, é claro.

Na época, eu morava sozinho. Tinha meus verdes 22 anos, trabalhava numa multinacional francesa de Paulínia, ganhava muito bem e estava me preparando para prestar, em janeiro, vestibular para Medicina. Não podia, pois, me dar o luxo de passar as festas com meus pais, que moravam em São Caetano do Sul. Precisava ralar no estudo. Relutei, fiz-me de difícil, mas finalmente aceitei seu convite. Afinal, nunca fui dado a luxos.

Entrei na modesta habitação, e os sinais de pobreza estavam por toda a parte. O interior estava imaculadamente limpo, é verdade, mas as paredes, com rachaduras em diversos pontos, há anos não viam tinta. O forro, por sua vez, estava negro em alguns pontos, notadamente nos cantos, em decorrência de vazamentos, provavelmente causados por telhas quebradas e não-trocadas. Na sala, onde fui instalado com todo o conforto, havia uma sólida mesa, cadeiras bastante velhas, mas em bom estado de conservação, um aparelho de TV, muito antigo, e uma árvore de Natal, tosca, sem pisca-pisca, que há muito já vira melhores dias.

A ceia foi tranqüila, alegre e sem-cerimônias, de parte a parte. O cardápio era dos mais frugais. Consistia de dois frangos assados, arroz branco, e maionese caseira. Mas nunca, ao que me lembre, comi comida mais gostosa e rica do que essa. A ceia foi aberta com um aperitivo, uma caninha especial, comprada diretamente num alambique caseiro do interior de Minas, que desceu macia e quente. Um vinho de garrafão, adquirido no Rio Grande do Sul, servia de acompanhamento.

Contamos casos e mais casos, histórias sem fim, das nossas respectivas experiências pessoais. E rimos, rimos muito, com espontaneidade e descontração, o tempo todo, mesmo quando não havia motivos para o riso. À certa altura, a pretexto de que precisava estudar para o vestibular (e precisava mesmo), pedi licença para me retirar. Despedi-me com afabilidade e emoção dos donos da casa, agradecido por aqueles momentos ímpares que passei em tão agradável companhia.

Num instante de distração dos anfitriões, num impulso irresistível, puxei da carteira, tirei todo o dinheiro que tinha (que era todo o meu décimo-terceiro, dos mais polpudos) e, sem ninguém perceber, coloquei tudo debaixo de um vaso de vidro, com flores artificiais, que estava sobre a televisão. A importância daria para cobrir o aluguel atrasado e ainda sobrar alguma quirera.

Já fora da casa, olhei para o céu, incrivelmente estrelado daquela noite inusitadamente quente de início de verão. Sentia-me bem como nunca. Segui cantarolando o “White Christmas”, de Irving Berlin, pela rua vazia, rumo à minha residência, tomado de uma gostosa, mas indescritível, emoção, misto de alegria e de nostalgia.

A esta altura, o ar da madrugada estava fresco. Uma suave brisa batia-me no rosto e assanhava meus cabelos. Ao longe, ouvia o sino da Igreja de Santa Isabel, convocando os fiéis para a missa do galo. Subitamente, uma estrela cadente riscou o céu noturno. Seria um presságio? Não sei! Talvez! Só sei que, passados mais de cinquenta anos, olhando retrospectivamente todo esse período, hoje tenho absoluta certeza de que aquele foi o melhor dos Natais que já tive em toda a minha vida...


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