Thursday, December 15, 2016

Ação e reações ao Diário Secreto de Humberto de Campos

Pedro J. Bondaczuk


O “Diário Secreto” de Humberto de Campos –  publicado em 1950 em fascículos e, quatro anos depois, em livro, em dois volumes, pela empresa que publicava a revista semanal “O Cruzeiro” (a mais prestigiosa e de maior circulação nacional à época) –  causou intensa polêmica e, pior, enorme escândalo, dado seu explosivo conteúdo. O motivo de toda essa celeuma, que perdurou por praticamente uma década, eram os diversos registros e impressões pessoais nada lisonjeiros e e nem um pouco abonadores, feitos pelo escritor maranhense, a respeito de pessoas de grande projeção nacional nas letras, na política e na sociedade de então. Citam-se entre as pessoas diretamente atingidas figuras como Machado de Assis, como o presidente Getúlio Vargas e como o poeta Olavo Bilac, entre tantos outros.

Várias das personalidades retratadas, ou melhor, caricaturadas, ainda estavam vivas na ocasião. Muitas, portanto, mobilizaram-se, de várias formas – ou por via judicial ou mediante candentes respostas na imprensa – na tentativa (vã) de desacreditar Humberto de Campos e de proibir, até, a venda do “Diário Secreto”, que lutavam para que fosse recolhido e destruído o material publicado. A mesma atitude foi adotada por parentes, amigos e simpatizantes das pessoas mortas citadas e que não podiam, claro, se defender. Houve, até, caso de ameaças de morte a um dos herdeiros do escritor. A publicação do “Diário Secreto” dividiu a família do autor. As filhas eram, desde o início, contrárias a que o explosivo material viesse a público. Foram, porém, “voto vencido”. Prevaleceu a opinião do primogênito, de Humberto de Campos Filho, que achava que a vontade do pai deveria ser atendida integralmente, sem restrições. E foi justamente ele o alvo de vários telefonemas anônimos, e de outros tipos até menos sutis de ameaças, jurando-o, até mesmo de morte caso não recolhesse o livro já publicado. Ele não recolheu. Felizmente, nada lhe aconteceu, a não ser uma série de aborrecimentos, mas sem maiores conseqüências.  
  
Humberto de Campos tinha consciência de quão delicado era o conteúdo de seus diários. Não consta, todavia, que em algum momento tenha lhe passado sequer remotamente pela cabeça a idéia de destruir esses registros. Aliás, em algumas crônicas publicadas em jornais ele chegou a insinuar que poderia publicar em vida todo esse material. Não publicou. Todavia, antes de morrer, teve o cuidado de guardar os originais nos cofres da Academia Brasileira de Letras, da qual era membro (e que chegou a presidir). Os originais foram embrulhados em papel pardo, selados, lacrados e rubricados por ele, para que não houvesse dúvida da autoria. Além disso, escreveu, à máquina, na frente dos pacotes: “Diário de Humberto de Campos – para ser aberto e publicado em 1950”, ou seja, com a recomendação expressa de se publicá-lo apenas 15 anos após a sua morte.

Cito a esse propósito a reveladora tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco de Giscard Farias Agra, de 2014. Intitulada “Quando a doença torna a vida um fardo: a trajetória de Humberto de Campos (1928-1934)”, esse detalhado e meticuloso ensaio tem servido como uma espécie de “roteiro”, para que eu aborde trechos específicos do “Diário Secreto”, sem que me perca nos meandros dessa obra. Giscard observa, a certa altura, o que teria levado o escritor maranhense a lacrar esse material, encerrá-lo no cofre da Academia Brasileira de Letras e determinar, expressamente, que ele fosse publicado, apenas, em 1950 (ou a partir desse ano):

“Consciente da acidez e da amargura com que narrava o seu cotidiano e caracterizava os seus pares nesses textos, Humberto afirmara que o prazo dado era necessário para superar certas tensões ainda existentes em sua época, bem como para evitar que seus escritos ‘íntimos’ gerassem novas graves questões com aqueles que neles figurassem”. Mais adiante, Giscard acentua: “Humberto, portanto, talvez tenha querido dar aos seus relatos, ao estipular a publicação apenas após anos ao seu falecimento, o patamar de testemunho prestado com a franqueza só possível a um morto, liberto, portanto, das convenções. E, de fato, quando os originais do Diário foram devolvidos à família e a polêmica sobre a sua possível publicação começou a aparecer nos jornais, em 1950, o ‘Diário da Noite’ estampou a matéria com um título bem sugestivo, que possibilitava pensar justamente em uma pessoa que, já morta, executava uma ação própria dos vivos como voltar a falar e a escrever: ‘Pode um morto falar dos vivos?’” Boa pergunta!!     

Registre-se que “Diário Secreto” não se restringe a atacar, a ironizar e, em muitos casos, a escrachar figuras de grande projeção do País daquela época, como os desavisados, que nem mesmo leram o livro, podem, erroneamente, deduzir. Parte considerável desse material é um relato, pungente, detalhado e sincero feito por Humberto de Campos, da sua doença e dos efeitos dela sobre seu físico e, principalmente, seu espírito. Claro que isso não gerou nenhuma polêmica. Muitos sequer se detiveram nessas narrativas. Num registro que fez em 9 de fevereiro de 1930, Humberto citou um comportamento bastante comum, não apenas no seu tempo, mas em todos os tempos, talvez como uma tentativa de justificação para o teor crítico de seu Diário. Escreveu: “Cada geração literária tem um ideal sacrílego. O da de Flaubert e dos Goncourt era destruir Voltaire. O da atual, aniquilar Anatole France”. E não é assim que o mundo das letras é e sempre foi tocado?! Fica claro que nesse trecho Humberto referia-se à disposição sempre renovada dos escritores, e não só no Brasil, de tentar aniquilar os pares semeando críticas, intrigas, maledicências. Ele não agiu, portanto, de forma nada diferente de boa parte de seus pares (do seu tempo e de todos os outros, frise-se), posto que, no seu caso, o fez em linguagem nua e crua, sem subterfúgios.

Como na lei da Física, “em que toda ação gera uma reação”, as reações à publicação do “Diário Secreto” não tardaram, quer da parte dos nominalmente citados, quer dos que repudiavam a atitude de Humberto de Campos, mesmo não sendo vítimas delas. Giscard Farias Agra cita, em sua preciosa tese, algumas delas: “A ‘Revista da Semana’ chegou a lançar, em duas de suas edições, já no mês de abril de 1951, uma enquete entre os intelectuais, perguntando-lhes o que haviam achado do Diário. Classificações como ‘literatura de terceira’, egocêntrico’, ‘mau escritor’, ‘ingrato’ foram alguns dos que apareceram para adjetivar tanto a obra, quanto o seu autor. Olegário Mariano, por exemplo, afirmou que ‘o Diário é um legado de lama’. Viriato Corrêa, por sua vez, maranhense, imortal da ABL, e antigo colega de jornalismo e de chapa eleitoral no pleito de 1930, a favor de quem Humberto escrevia publicamente, mas contra o qual deixaria péssimas impressões no Diário, afirmou que ‘estamos assistindo à putrefação de uma alma. Abriu-se o túmulo e apareceu a podridão’”. Outras tantas manifestações mais ocorreram, muito mais contundentes e ferinas do que estas, mas não as reproduzirei, para não reacender uma polêmica ditada por um estúpido festival de vaidades que não deveria nunca sequer ter começado.       

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