Ação e reações ao
Diário Secreto de Humberto de Campos
Pedro
J. Bondaczuk
O “Diário Secreto” de
Humberto de Campos – publicado em 1950
em fascículos e, quatro anos depois, em livro, em dois volumes, pela empresa
que publicava a revista semanal “O Cruzeiro” (a mais prestigiosa e de maior
circulação nacional à época) – causou
intensa polêmica e, pior, enorme escândalo, dado seu explosivo conteúdo. O
motivo de toda essa celeuma, que perdurou por praticamente uma década, eram os
diversos registros e impressões pessoais nada lisonjeiros e e nem um pouco
abonadores, feitos pelo escritor maranhense, a respeito de pessoas de grande
projeção nacional nas letras, na política e na sociedade de então. Citam-se
entre as pessoas diretamente atingidas figuras como Machado de Assis, como o
presidente Getúlio Vargas e como o poeta Olavo Bilac, entre tantos outros.
Várias das personalidades
retratadas, ou melhor, caricaturadas, ainda estavam vivas na ocasião. Muitas,
portanto, mobilizaram-se, de várias formas – ou por via judicial ou mediante
candentes respostas na imprensa – na tentativa (vã) de desacreditar Humberto de
Campos e de proibir, até, a venda do “Diário Secreto”, que lutavam para que
fosse recolhido e destruído o material publicado. A mesma atitude foi adotada
por parentes, amigos e simpatizantes das pessoas mortas citadas e que não
podiam, claro, se defender. Houve, até, caso de ameaças de morte a um dos
herdeiros do escritor. A publicação do “Diário Secreto” dividiu a família do
autor. As filhas eram, desde o início, contrárias a que o explosivo material
viesse a público. Foram, porém, “voto vencido”. Prevaleceu a opinião do primogênito,
de Humberto de Campos Filho, que achava que a vontade do pai deveria ser
atendida integralmente, sem restrições. E foi justamente ele o alvo de vários
telefonemas anônimos, e de outros tipos até menos sutis de ameaças, jurando-o,
até mesmo de morte caso não recolhesse o livro já publicado. Ele não recolheu.
Felizmente, nada lhe aconteceu, a não ser uma série de aborrecimentos, mas sem
maiores conseqüências.
Humberto de Campos
tinha consciência de quão delicado era o conteúdo de seus diários. Não consta,
todavia, que em algum momento tenha lhe passado sequer remotamente pela cabeça
a idéia de destruir esses registros. Aliás, em algumas crônicas publicadas em
jornais ele chegou a insinuar que poderia publicar em vida todo esse material.
Não publicou. Todavia, antes de morrer, teve o cuidado de guardar os originais
nos cofres da Academia Brasileira de Letras, da qual era membro (e que chegou a
presidir). Os originais foram embrulhados em papel pardo, selados, lacrados e
rubricados por ele, para que não houvesse dúvida da autoria. Além disso,
escreveu, à máquina, na frente dos pacotes: “Diário de Humberto de Campos –
para ser aberto e publicado em 1950”, ou seja, com a recomendação expressa de
se publicá-lo apenas 15 anos após a sua morte.
Cito a esse propósito a
reveladora tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco de Giscard Farias Agra, de 2014. Intitulada
“Quando a doença torna a vida um fardo: a trajetória de Humberto de Campos
(1928-1934)”, esse detalhado e meticuloso ensaio tem servido como uma espécie
de “roteiro”, para que eu aborde trechos específicos do “Diário Secreto”, sem
que me perca nos meandros dessa obra. Giscard observa, a certa altura, o que
teria levado o escritor maranhense a lacrar esse material, encerrá-lo no cofre
da Academia Brasileira de Letras e determinar, expressamente, que ele fosse
publicado, apenas, em 1950 (ou a partir desse ano):
“Consciente da acidez e
da amargura com que narrava o seu cotidiano e caracterizava os seus pares
nesses textos, Humberto afirmara que o prazo dado era necessário para superar
certas tensões ainda existentes em sua época, bem como para evitar que seus
escritos ‘íntimos’ gerassem novas graves questões com aqueles que neles
figurassem”. Mais adiante, Giscard acentua: “Humberto, portanto, talvez tenha
querido dar aos seus relatos, ao estipular a publicação apenas após anos ao seu
falecimento, o patamar de testemunho prestado com a franqueza só possível a um
morto, liberto, portanto, das convenções. E, de fato, quando os originais do
Diário foram devolvidos à família e a polêmica sobre a sua possível publicação
começou a aparecer nos jornais, em 1950, o ‘Diário da Noite’ estampou a matéria
com um título bem sugestivo, que possibilitava pensar justamente em uma pessoa
que, já morta, executava uma ação própria dos vivos como voltar a falar e a
escrever: ‘Pode um morto falar dos vivos?’” Boa pergunta!!
Registre-se que “Diário
Secreto” não se restringe a atacar, a ironizar e, em muitos casos, a escrachar
figuras de grande projeção do País daquela época, como os desavisados, que nem
mesmo leram o livro, podem, erroneamente, deduzir. Parte considerável desse
material é um relato, pungente, detalhado e sincero feito por Humberto de
Campos, da sua doença e dos efeitos dela sobre seu físico e, principalmente,
seu espírito. Claro que isso não gerou nenhuma polêmica. Muitos sequer se
detiveram nessas narrativas. Num registro que fez em 9 de fevereiro de 1930,
Humberto citou um comportamento bastante comum, não apenas no seu tempo, mas em
todos os tempos, talvez como uma tentativa de justificação para o teor crítico
de seu Diário. Escreveu: “Cada geração literária tem um ideal sacrílego. O da
de Flaubert e dos Goncourt era destruir Voltaire. O da atual, aniquilar Anatole
France”. E não é assim que o mundo das letras é e sempre foi tocado?! Fica
claro que nesse trecho Humberto referia-se à disposição sempre renovada dos
escritores, e não só no Brasil, de tentar aniquilar os pares semeando críticas,
intrigas, maledicências. Ele não agiu, portanto, de forma nada diferente de boa
parte de seus pares (do seu tempo e de todos os outros, frise-se), posto que,
no seu caso, o fez em linguagem nua e crua, sem subterfúgios.
Como na lei da Física,
“em que toda ação gera uma reação”, as reações à publicação do “Diário Secreto”
não tardaram, quer da parte dos nominalmente citados, quer dos que repudiavam a
atitude de Humberto de Campos, mesmo não sendo vítimas delas. Giscard Farias
Agra cita, em sua preciosa tese, algumas delas: “A ‘Revista da Semana’ chegou a
lançar, em duas de suas edições, já no mês de abril de 1951, uma enquete entre
os intelectuais, perguntando-lhes o que haviam achado do Diário. Classificações
como ‘literatura de terceira’, egocêntrico’, ‘mau escritor’, ‘ingrato’ foram
alguns dos que apareceram para adjetivar tanto a obra, quanto o seu autor.
Olegário Mariano, por exemplo, afirmou que ‘o Diário é um legado de lama’.
Viriato Corrêa, por sua vez, maranhense, imortal da ABL, e antigo colega de jornalismo
e de chapa eleitoral no pleito de 1930, a favor de quem Humberto escrevia
publicamente, mas contra o qual deixaria péssimas impressões no Diário, afirmou
que ‘estamos assistindo à putrefação de uma alma. Abriu-se o túmulo e apareceu
a podridão’”. Outras tantas manifestações mais ocorreram, muito mais
contundentes e ferinas do que estas, mas não as reproduzirei, para não
reacender uma polêmica ditada por um estúpido festival de vaidades que não
deveria nunca sequer ter começado.
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