Sunday, December 04, 2016

Falta de motivação inibe o talento


Pedro J. Bondaczuk


O incidente registrado na quinta-feira, na União Soviética, quando um jovem piloto alemão ocidental, que tirou seu brevê não faz muito tempo, pilotando um frágil Cessna 172-B do Aeroclube de Hamburgo, conseguiu burlar os mais rígidos e sofisticados sistemas de defesa aérea do mundo e chegar até às muralhas do Cremlin, no centro de Moscou, o coração do poder da superpotência marxista, faz o observador entender, perfeitamente, a razão pela qual o líder Mikhail Gorbachev está tão empenhado em mudar essa sociedade.

O burocrativismo exacerbado produziu como que uma letargia coletiva, um entorpecimento do senso individual de responsabilidade nos russos. Em outras palavras, não há a vontade de ser eficiente, por falta de reconhecimento pessoal.

O cidadão, conscientizado de que é nada mais do que uma simples peça de uma gigantesca engrenagem, perde um fator indispensável para se empenhar em ser competente: a motivação. Todos, certamente, se recordam do que aconteceu em Chernobyl, em 26 de abril de 1986, naquele que foi o maior desastre nuclear de todos os tempos.

Entre a data da ocorrência do lamentável acidente e a da confirmação dele, por parte do Cremlin, transcorreram 48 horas, vitais para muita gente, que acabou sendo exposta sem necessidade aa doses excessivas de radiação. Dias depois, autoridades soviéticas admitiram que houve demora na comunicação. Os funcionáarios da usina acidentada, que teriam feito uma experiência não autorizada no reator, relutaram em assumir a responsabilidade.

O caso do Cessna pode ser (e é) pitoresco para a imprensa ocidental, por seu aspecto inusitado. Certamente não passou de uma aventura para Mathias Rust, o rapaz de 19 anos (portanto, irresponsável, ainda, do ponto de vista civil), que o tornará uma celebridade mundial por alguns poucos e efêmeros meses, até que seu nome volte a cair no ostracismo.

Dentro de alguns dias, para a maioria, o caso não passará de uma simples história. E, em alguns anos, o protagonista dessa peripécia terá dificuldades para convencer os próprios netos que conseguiu realizar tal façanha. Corre o risco, até, de passar por mentiroso.

Todavia, na União Soviética, a questão, com toda certeza, não será encarada com tanta simplicidade. Todo o aparato defensivo (e não, portanto, um único funcionário relapso) falhou nesta oportunidade. E se o rapaz fosse um terrorista homicida transportando algumas bombas? E se, ao sobrevoar, em vôos rasantes, por duas vezes, a Praça Vermelha de Moscou, desovasse alguns explosivos sobre os transeuntes? E se cismasse de atacar a sede do poder soviético?

Teríamos, agora, um incidente internacional de proporções bastante sérias. São casos tolos, como este, aparentemente até pitorescos, que provocam as grandes conflagrações mundiais. O constrangedor, para os russos, foi o fato de que, na data em que o seu espaço aéreo foi violado com tamanha facilidade por um jovem ainda imberbe, o país comemorava o Dia da Guarda de Fronteira. Ou seja, era festejada exatamente a corporação que cometeu essa omissão tão imperdoável que, certamente, deixará, doravante, o povo soviético inseguro e desconfiado da capacidade das autoridades garantirem a segurança nacional.

Talvez a imprensa ocidental jamais venha a saber quem será o culpado pelo caso. Mas é quase certo que a corda, mais uma vez, vai arrebentar do lado mais fraco. Ou seja, algum pobre diabo, sem chances de se defender condignamente, será culpado, como sempre acontece, e aa honra do sistema ficará a salvo.

Portanto, quando se diz que as reformas propostas por Gorbachev (tão combatidas pela gerontocracia que ainda predomina no centro de poder da URSS) são fundamentais para que esse país continue sendo superpotência, não há qualquer exagero.

O burocrativismo, em termos de administração, e o centralismo estatal, nos meios de produção, são o túmulo da motivação e, portanto, da responsabilidade individual da produtividade. E o homem (isto é o óbvio ululante, como diria o teatrólogo Nelson Rodrigues) não é uma máquina.

(Artigo publicado na página 20, Internacional, do Correio Popular, em 31 de maio de 1987).


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