Falta de motivação inibe o talento
Pedro J.
Bondaczuk
O incidente registrado na quinta-feira, na União
Soviética, quando um jovem piloto alemão ocidental, que tirou seu brevê não faz
muito tempo, pilotando um frágil Cessna 172-B do Aeroclube de Hamburgo,
conseguiu burlar os mais rígidos e sofisticados sistemas de defesa aérea do
mundo e chegar até às muralhas do Cremlin, no centro de Moscou, o coração do
poder da superpotência marxista, faz o observador entender, perfeitamente, a
razão pela qual o líder Mikhail Gorbachev está tão empenhado em mudar essa
sociedade.
O burocrativismo exacerbado
produziu como que uma letargia coletiva, um entorpecimento do senso individual
de responsabilidade nos russos. Em outras palavras, não há a vontade de ser
eficiente, por falta de reconhecimento pessoal.
O cidadão, conscientizado de que
é nada mais do que uma simples peça de uma gigantesca engrenagem, perde um
fator indispensável para se empenhar em ser competente: a motivação. Todos,
certamente, se recordam do que aconteceu em Chernobyl, em 26 de abril de 1986,
naquele que foi o maior desastre nuclear de todos os tempos.
Entre a data da ocorrência do
lamentável acidente e a da confirmação dele, por parte do Cremlin,
transcorreram 48 horas, vitais para muita gente, que acabou sendo exposta sem
necessidade aa doses excessivas de radiação. Dias depois, autoridades
soviéticas admitiram que houve demora na comunicação. Os funcionáarios da usina
acidentada, que teriam feito uma experiência não autorizada no reator, relutaram
em assumir a responsabilidade.
O caso do Cessna pode ser (e é)
pitoresco para a imprensa ocidental, por seu aspecto inusitado. Certamente não
passou de uma aventura para Mathias Rust, o rapaz de 19 anos (portanto,
irresponsável, ainda, do ponto de vista civil), que o tornará uma celebridade
mundial por alguns poucos e efêmeros meses, até que seu nome volte a cair no
ostracismo.
Dentro de alguns dias, para a
maioria, o caso não passará de uma simples história. E, em alguns anos, o
protagonista dessa peripécia terá dificuldades para convencer os próprios netos
que conseguiu realizar tal façanha. Corre o risco, até, de passar por
mentiroso.
Todavia, na União Soviética, a
questão, com toda certeza, não será encarada com tanta simplicidade. Todo o
aparato defensivo (e não, portanto, um único funcionário relapso) falhou nesta
oportunidade. E se o rapaz fosse um terrorista homicida transportando algumas
bombas? E se, ao sobrevoar, em vôos rasantes, por duas vezes, a Praça Vermelha
de Moscou, desovasse alguns explosivos sobre os transeuntes? E se cismasse de
atacar a sede do poder soviético?
Teríamos, agora, um incidente
internacional de proporções bastante sérias. São casos tolos, como este,
aparentemente até pitorescos, que provocam as grandes conflagrações mundiais. O
constrangedor, para os russos, foi o fato de que, na data em que o seu espaço
aéreo foi violado com tamanha facilidade por um jovem ainda imberbe, o país
comemorava o Dia da Guarda de Fronteira. Ou seja, era festejada exatamente a
corporação que cometeu essa omissão tão imperdoável que, certamente, deixará,
doravante, o povo soviético inseguro e desconfiado da capacidade das
autoridades garantirem a segurança nacional.
Talvez a imprensa ocidental
jamais venha a saber quem será o culpado pelo caso. Mas é quase certo que a
corda, mais uma vez, vai arrebentar do lado mais fraco. Ou seja, algum pobre
diabo, sem chances de se defender condignamente, será culpado, como sempre
acontece, e aa honra do sistema ficará a salvo.
Portanto, quando se diz que as
reformas propostas por Gorbachev (tão combatidas pela gerontocracia que ainda
predomina no centro de poder da URSS) são fundamentais para que esse país
continue sendo superpotência, não há qualquer exagero.
O burocrativismo, em termos de
administração, e o centralismo estatal, nos meios de produção, são o túmulo da
motivação e, portanto, da responsabilidade individual da produtividade. E o
homem (isto é o óbvio ululante, como diria o teatrólogo Nelson Rodrigues) não é
uma máquina.
(Artigo publicado na página 20, Internacional, do Correio Popular, em 31
de maio de 1987).
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