Tuesday, December 20, 2016

Consumidor lesado, outra vez


Pedro J. Bondaczuk


O leite do tipo C, aquele raliunho, cujo gosto na maioria das marcas não é dos melhores e que o consumidor desconfia que tenha mais água do que nutrientes característicos desse alimento, está com seus preços liberados. Até aí, tudo bem. A liberação já foi noticiada e comentada fartamente desde o início da semana.

A notícia que mexe com os brios do crítico é a que diz que o governo está estudando retaliações aos laticínios, produtores e beneficiadores do produto que o aumentaram em até 65,4%, quando o compromisso era o de uma alta de 34%. Como se vê, faz uma falta imensa por aqui um Ralph Nader, o legendário defensor dos consumidores norte-americanos, que abriu – e venceu – uma guerra contra aqueles que lesam a boa fé e o bolso do cidadão.

Fomos, somos e sempre seremos defensores do livre mercado. Mas insistimos que tal liberdade somente existe onde não há cartéis, monopólios ou oligopólios. Onde há uma saudável concorrência entre produtores e comerciantes, envolvendo a dobradinha irresistível: qualidade e preço.

Em relação ao leite, porém, onde ela está? Alguém conhece quem esteja vendendo o produto mais barato? O que causa espanto em tudo isso é a falta de sensibilidade humana. Não é segredo para ninguém que a qualidade do produto tipo C é sofrível. E não se trata de crítica vazia e nem de alguma eventual manobra política.

É um fato facilmente constatável. Basta que qualquer pessoa dê um pulinho ao bar ou armazém da esquina, compre um litro e prove – se é que há quem não conheça essa má qualidade.

O próprio fato de ser C indica tratar-se de mercadoria de terceira qualidade. Ainda assim, é o alimento por excelência da população de baixa renda do País, cerca de 130 milhões de brasileiros (um Bangladesh e uma Alemanha Oriental somados em termos de habitantes).

A decisão de liberar o preço chega a ser trágica para um contingente tão expressivo de pessoas, quando se sabe que o salário mínimo do Brasil, mesmo com o aumento de 27,14% deste mês, é o segundo mais baixo do mundo, equivalente a míseros US$ 67, acima somente daquele que é pago na Guatemala.

Outro fato que não é novidade para ninguém é a absurda mortalidade infantil brasileira, causada pela subnutrição e suas seqüelas, ou seja, numa linguagem mais clara e dura: pela fome. Se a intenção, com a liberação, foi a de estabelecer uma saudável concorrência, objetivando baratear o produto, algo deixou de ser levado em conta. Alguma coisa falhou. Quem sabe uma disfarçada cartelização desse setor! O que não se admite é a vida de tanta gente vir a ser piorada apenas porque algum tecnocrata deseja testar suas teorias sobre mercado.

(Artigo publicado na página 2, Opinião, do Correio Popular, em 19 de julho de 1990).


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