Violência para prevenir violências
Pedro J. Bondaczuk
Os maias – aos quais se atribui suposta “profecia” que prevê que o mundo vai se acabar em 21 de dezembro de 2012 – já praticavam esportes – a rigor, eu deveria afirmar isso no singular, pois praticavam apenas um – séculos, na verdade um milênio, antes dos gregos. Essa prática era rigorosamente inusitada naqueles tempos tão remotos. O quê, leitor, você está admirado? Pois é, esse povo chegou, quase um milênio antes do nascimento de Cristo, a esse grau de requinte e de sofisticação.
Bem, na verdade, o que praticavam, embora possa ser caracterizado como esporte, não tinha a finalidade de desenvolver o físico dos praticantes e, embora fosse uma forma de competição (e põe competição nisso!), não se tratava, propriamente, de lazer, para distrair aficionados. Era maneira, violenta é verdade, de punir, e por conseqüência, de prevenir a violência. Explico.
O império maia contava com várias cidades, ou seja, com diversas comunidades. É lícito supor que cada uma delas tivesse lá seus próprios costumes, suas regras morais e sociais e suas diferenças de conceitos e pontos de vista. É uma ingenuidade esperar homogeneidade de grupos heterogêneos. Portanto, não raro surgiam conflitos de interesse entre duas ou mais cidades. Entre outros povos (e entre nós, ditos “civilizados”, que vivemos no século XXI do terceiro milênio da Era Cristã na suposta “civilização da comunicação total”) essas controvérsias eram (e ainda são) resolvidas mediante o recurso das armas. Ou seja, das guerras contra outros países ou internas, as civis.
Entre os maias isso não acontecia. Os conflitos de interesse eram resolvidos num campo esportivo. Aliás, em uma espécie de quadra. É verdade que o jogo em questão também terminava em morte. Todavia, não de centenas, quiçá milhares de pessoas (quando não alguns milhões), além dos prejuízos materiais, morais e psicológicos absurdos, que uma guerra deixa em seu rastro. A tal prática esportiva destinava-se, justamente, a evitar tudo isso. Havia morte, sim, mas de apenas uma pessoa: a do capitão do time que perdesse a partida, por isso renhidamente disputada.
Os demais jogadores da equipe derrotada e o clã que eles representavam eram poupados. E os vencedores tinham como prêmio a vida. No caso, a do seu capitão. Além, é claro, do reconhecimento tácito de que tinham razão na disputa com o grupo rival (mesmo que à luz das provas não tivessem) que havia sido o motivo da partida. “Era uma selvageria!”, exclamarão alguns. Até era, mas bem menor do que o expediente das guerras. Tratava-se, pois, de violência destinada a punir ou a prevenir violências maiores. É possível, se não provável, que essa inusitada prática tenha sido a responsável por manter a coesão do império maia por cerca de um milênio, uma das maiores durações de que se tem notícia na história.
Esse “esporte” nacional tão remoto era um misto dos nossos atuais futebol e basquete. De acordo com os pesquisadores, tinha regras bem definidas e respeitadas por todos os competidores. Prescindia, portanto, de árbitros. Afinal, no campo estava em jogo a honra de toda uma comunidade, o que para os maias não tinha preço. Muitas dessas “canchas” têm sido descobertas, volta e meia, em áreas do México e de países da América Central, o que comprova que essa prática era disseminada por todo o império.
As dimensões dos campos variavam bastante. Não havia, pois, um padrão que fosse seguido. O maior deles tinha dimensões mais amplas do que os atuais gramados de futebol. Mediam 166 metros de comprimento por 68,5 metros de largura. Eram cercados por muros laterais e num dos lados havia um único aro de pedra, artisticamente trabalhado. Os pontos eram feitos quando a bola passava por ele.
Cada time que participava dessas competições era constituído por somente sete jogadores. O capitão era o líder da cidade (comunidade ou clã), geralmente sua figura mais representativa e acatada. Sua responsabilidade era muito maior do que a de qualquer outro membro do time. Afinal, em caso de derrota, era ele o único executado. Portanto, entre os maias, não prevalecia a máxima do Barão de Coubertin, de que “o importante é competir”. Ali, o importante era vencer mesmo, para permanecer vivo.
A bola era confeccionada de borracha maciça e tinha as dimensões e peso das que até recentemente eram utilizadas para a prática do futebol de salão. A princípio, pode até parecer que era fácil consignar pontos nesse estranho e primitivo esporte. Ledo engano. Era complicado, complicadíssimo. Exigia habilidade, força, resistência e sorte, muita sorte.
Não havia tempo predeterminado para os jogos. Cada um deles durava até que uma das equipes se desse definitivamente por vencida. Como vidas, além da honra, estavam envolvidas, os times iam ao limite da resistência física. Havia competições que, às vezes, chegavam a durar toda uma semana ou mais. Claro, com os devidos intervalos para os jogadores descansarem, dormirem, se alimentarem etc.
Os times jogavam uniformizados. Eram riquíssimos trajes de gala, ornamentados de jóias, que passavam a ser propriedade, uma espécie de “despojo”, da equipe vencedora. Quanto às regras, havia uma que era essencial: a bola não podia ser arremessada no aro com as mãos. Tinha que ser rebatida com os cotovelos, joelhos ou quadris, que eram protegidos por almofadas de couro.
Não havia faltas. A disputa era sempre renhida, intensa, frenética e os jogadores mais fortes, obviamente, levavam vantagem. Por isso, havia imenso rigor na escolha dos componentes dos times. Levava-se em conta, pois, não somente as habilidades no domínio da bola, mas também (ou principalmente) a força muscular e a resistência.
Ao cabo de cada partida, os atletas, invariavelmente, deixavam o campo estropiados, não raro com fraturas expostas, luxações e várias outras escoriações. E isso era de se esperar. Afinal, era a honra da cidade (ou comunidade, ou clã) que estava em jogo. E, sem esquecer, era a vida do capitão do time.
Já imaginaram se as disputas internacionais de hoje fossem resolvidas nas canchas desse esporte maia, com todas as suas regras e nuances, em vez dos campos de batalha? Imaginaram a equipe dos EUA, por exemplo, capitaneada por George Bush, enfrentando a do Iraque, que teria por capitão o executado ditador Saddam Hussein? Muita carnificina e destruição seriam evitadas. No fim das contas me pergunto, atônito: afinal, eram os maias que eram selvagens? Ou somos nós, os “civilizados” do século XXI? O que você acha?
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
Os maias – aos quais se atribui suposta “profecia” que prevê que o mundo vai se acabar em 21 de dezembro de 2012 – já praticavam esportes – a rigor, eu deveria afirmar isso no singular, pois praticavam apenas um – séculos, na verdade um milênio, antes dos gregos. Essa prática era rigorosamente inusitada naqueles tempos tão remotos. O quê, leitor, você está admirado? Pois é, esse povo chegou, quase um milênio antes do nascimento de Cristo, a esse grau de requinte e de sofisticação.
Bem, na verdade, o que praticavam, embora possa ser caracterizado como esporte, não tinha a finalidade de desenvolver o físico dos praticantes e, embora fosse uma forma de competição (e põe competição nisso!), não se tratava, propriamente, de lazer, para distrair aficionados. Era maneira, violenta é verdade, de punir, e por conseqüência, de prevenir a violência. Explico.
O império maia contava com várias cidades, ou seja, com diversas comunidades. É lícito supor que cada uma delas tivesse lá seus próprios costumes, suas regras morais e sociais e suas diferenças de conceitos e pontos de vista. É uma ingenuidade esperar homogeneidade de grupos heterogêneos. Portanto, não raro surgiam conflitos de interesse entre duas ou mais cidades. Entre outros povos (e entre nós, ditos “civilizados”, que vivemos no século XXI do terceiro milênio da Era Cristã na suposta “civilização da comunicação total”) essas controvérsias eram (e ainda são) resolvidas mediante o recurso das armas. Ou seja, das guerras contra outros países ou internas, as civis.
Entre os maias isso não acontecia. Os conflitos de interesse eram resolvidos num campo esportivo. Aliás, em uma espécie de quadra. É verdade que o jogo em questão também terminava em morte. Todavia, não de centenas, quiçá milhares de pessoas (quando não alguns milhões), além dos prejuízos materiais, morais e psicológicos absurdos, que uma guerra deixa em seu rastro. A tal prática esportiva destinava-se, justamente, a evitar tudo isso. Havia morte, sim, mas de apenas uma pessoa: a do capitão do time que perdesse a partida, por isso renhidamente disputada.
Os demais jogadores da equipe derrotada e o clã que eles representavam eram poupados. E os vencedores tinham como prêmio a vida. No caso, a do seu capitão. Além, é claro, do reconhecimento tácito de que tinham razão na disputa com o grupo rival (mesmo que à luz das provas não tivessem) que havia sido o motivo da partida. “Era uma selvageria!”, exclamarão alguns. Até era, mas bem menor do que o expediente das guerras. Tratava-se, pois, de violência destinada a punir ou a prevenir violências maiores. É possível, se não provável, que essa inusitada prática tenha sido a responsável por manter a coesão do império maia por cerca de um milênio, uma das maiores durações de que se tem notícia na história.
Esse “esporte” nacional tão remoto era um misto dos nossos atuais futebol e basquete. De acordo com os pesquisadores, tinha regras bem definidas e respeitadas por todos os competidores. Prescindia, portanto, de árbitros. Afinal, no campo estava em jogo a honra de toda uma comunidade, o que para os maias não tinha preço. Muitas dessas “canchas” têm sido descobertas, volta e meia, em áreas do México e de países da América Central, o que comprova que essa prática era disseminada por todo o império.
As dimensões dos campos variavam bastante. Não havia, pois, um padrão que fosse seguido. O maior deles tinha dimensões mais amplas do que os atuais gramados de futebol. Mediam 166 metros de comprimento por 68,5 metros de largura. Eram cercados por muros laterais e num dos lados havia um único aro de pedra, artisticamente trabalhado. Os pontos eram feitos quando a bola passava por ele.
Cada time que participava dessas competições era constituído por somente sete jogadores. O capitão era o líder da cidade (comunidade ou clã), geralmente sua figura mais representativa e acatada. Sua responsabilidade era muito maior do que a de qualquer outro membro do time. Afinal, em caso de derrota, era ele o único executado. Portanto, entre os maias, não prevalecia a máxima do Barão de Coubertin, de que “o importante é competir”. Ali, o importante era vencer mesmo, para permanecer vivo.
A bola era confeccionada de borracha maciça e tinha as dimensões e peso das que até recentemente eram utilizadas para a prática do futebol de salão. A princípio, pode até parecer que era fácil consignar pontos nesse estranho e primitivo esporte. Ledo engano. Era complicado, complicadíssimo. Exigia habilidade, força, resistência e sorte, muita sorte.
Não havia tempo predeterminado para os jogos. Cada um deles durava até que uma das equipes se desse definitivamente por vencida. Como vidas, além da honra, estavam envolvidas, os times iam ao limite da resistência física. Havia competições que, às vezes, chegavam a durar toda uma semana ou mais. Claro, com os devidos intervalos para os jogadores descansarem, dormirem, se alimentarem etc.
Os times jogavam uniformizados. Eram riquíssimos trajes de gala, ornamentados de jóias, que passavam a ser propriedade, uma espécie de “despojo”, da equipe vencedora. Quanto às regras, havia uma que era essencial: a bola não podia ser arremessada no aro com as mãos. Tinha que ser rebatida com os cotovelos, joelhos ou quadris, que eram protegidos por almofadas de couro.
Não havia faltas. A disputa era sempre renhida, intensa, frenética e os jogadores mais fortes, obviamente, levavam vantagem. Por isso, havia imenso rigor na escolha dos componentes dos times. Levava-se em conta, pois, não somente as habilidades no domínio da bola, mas também (ou principalmente) a força muscular e a resistência.
Ao cabo de cada partida, os atletas, invariavelmente, deixavam o campo estropiados, não raro com fraturas expostas, luxações e várias outras escoriações. E isso era de se esperar. Afinal, era a honra da cidade (ou comunidade, ou clã) que estava em jogo. E, sem esquecer, era a vida do capitão do time.
Já imaginaram se as disputas internacionais de hoje fossem resolvidas nas canchas desse esporte maia, com todas as suas regras e nuances, em vez dos campos de batalha? Imaginaram a equipe dos EUA, por exemplo, capitaneada por George Bush, enfrentando a do Iraque, que teria por capitão o executado ditador Saddam Hussein? Muita carnificina e destruição seriam evitadas. No fim das contas me pergunto, atônito: afinal, eram os maias que eram selvagens? Ou somos nós, os “civilizados” do século XXI? O que você acha?
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