Restam as lições
Pedro J. Bondaczuk
"Admiro o conhecimento pelo conhecimento – aquela filosofia pura, que nos mantém na torre de marfim da meditação, atitude de espírito que faz falta à humanidade. Mas que pode ser adotada se e quando satisfeito lhe estiver o próprio estômago”. Estas palavras foram escritas por um sábio, o professor, jornalista e escritor Francisco Isolino Siqueira, na crônica “Ensino eficiente”, publicada em 11 de março de 1984 no jornal “Correio Popular” de Campinas, do qual, por muitos anos, foi o editor-chefe. Trabalhei por duas décadas nessa empresa jornalística, mas não tive a oportunidade de ser comandado por esse notável intelectual que, a despeito de sua sabedoria, era de uma simplicidade franciscana. Quando fui contratado, ele já havia se afastado desse diário, para dedicar-se a três outras de suas paixões: o magistério, a advocacia e a literatura.
Se no jornalismo não pude privar do seu seguro comando, em duas outras atividades que exerceu tive o privilégio de gozar de sua companhia e de receber, portanto, sua saudável influência. Fui seu aluno na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e lhe devo, portanto, muito do que sei e do que sou. E por uma dessas circunstâncias que a vida nos reserva (neste caso, felicíssima), a partir de 1992 me tornei seu parceiro na Academia Campinense de Letras.
Foi um desses “presentes” inesperados e surpreendentes que o acaso, às vezes, nos proporciona. Não pelo fato de ter reconhecido meus supostos méritos literários (até hoje me questiono se estes existiram ou se existem e, em caso afirmativo, se eram ou se são suficientes para tamanha investidura), mas por subir um patamar intelectual a mais e me tornar parceiro do meu mestre. Que honra! Que dádiva da vida! Que privilégio! Aliás, a honra foi multiplicada, já que me tornei colega não apenas de um, mas de sete dos meus professores (até parece conta de mentiroso).
Quando me tornei acadêmico, Isolino Siqueira (e os demais mestres, que me honraram com seus votos) já era, há muito, membro daquela augusta casa de cultura e de letras. Jamais irei esquecer o entusiasmo e o orgulho que o ilustre professor manifestou quando da minha posse na cadeira de número 14, que venho me empenhando por merecer e por honrar. Por isso, sinto-me acabrunhado, chocado, sumamente triste, com uma sensação desagradabilíssima de vazio, com a notícia de sua morte, ocorrida em 3 de abril de 2012. Sinto como se houvesse perdido um irmão mais velho, amigo de todas as horas, tutor e conselheiro, cuja ausência ninguém conseguirá preencher. E foi, de fato, esse “mano” querido (posto que espiritual) que perdi.
É verdade que, se não posso mais privar da sua afável companhia física – em todas as datas especiais para mim, como meu aniversário, páscoas, natais, anos novos etc., era certeza que receber, invariavelmente, seus telefonemas, ou e-mails, ou ambos, com uma regularidade inigualada pelos parentes mais chegados, inclusive filhos – mas resta-me o consolo de matar as saudades, que já são insuportáveis, nos tantos e tão humanos textos que nos legou. Como por exemplo, a crônica com que abro estas tristes reflexões de hoje. Esta, todavia, é a vantagem dos realizadores. Morre o homem, mas fica sua obra que, por sua sabedoria, sensibilidade, grandeza e até transcendência, merece maior, muito maior divulgação do que tem.
Isolino Siqueira foi, sobretudo, humanista, pessoa solidária preocupada com as injustiças sociais e o sofrimento de tantos, diria, de pelo menos dois terços dos sete bilhões de habitantes do Planeta. Comungo dessa preocupação que aprendi a ter exatamente com esse mestre. Sei que este texto vai soar exagerado e talvez piegas para quem não está sentindo o que sinto neste momento. Pouco importa. Ele é fruto exclusivo da emoção e não do intelecto. Como o mestre, também gostaria de, neste momento, estar encerrado na “torre de marfim da meditação”, indiferente ao que se passa ao redor. Se o fizesse, todavia, estaria sendo desleal com ele e com os ideais que ele me inspirou a abraçar.
Isolino Siqueira defendia uma arte engajada que, sem deixar de ser bela e transcendente, pudesse ser partilhada por “todos”, rigorosamente todos, quer por ricos, quer por pobres, quer por intelectuais, quer por analfabetos, quer por poderosos, quer pelos mais humildes entre os humildes. Utopia? Talvez! Mas é um sonho que vale a pena sonhar.
O mestre escreveu a propósito, na crônica que citei no início destas reflexões: “Para mim tudo deve ser resposta – ou seja, assumir a responsabilidade pela promoção do irmão de quotidiano, aqui e agora, a poesia, a pintura, a escultura, a própria dança. O homem comum deve ser atingido, diretamente, pela mensagem da arte, da ciência, da filosofia ou o conhecimento deve trazer o homem comum à sua altura – à altura do homem e da própria cultura. As bibliotecas devem ter acesso escancarado a todo o gênero de sensibilidade – como as rampas que facilitam a própria caminhada".
O mestre insiste no tema, em tantos outros textos, sempre trazendo novos enfoques, novas colocações, novas e pertinentes observações. A crônica "Linguagem, livros e leitores", publicada em 20 de novembro de 1983, é praticamente o "credo" desse intelectual, que sempre se considerou, sobretudo, professor.
Afirma: "Mantenho-me na vida universitária, ainda como professor, quase depois de vinte e cinco anos, por alguns motivos que me enriquecem, dentre os quais aquele que se contém na lição permanente da madrugada do espírito, o entusiasmo dos jovens, de sua inquietação e dedicação à aventura, obtenho mais resultados do que os ofereço à formação e informação de meus alunos, porque a dedicação que aprendi desenvolver em nome do ensino, na pesquisa, no debate que é fruto da meditação, tudo isto coloca-me, ainda hoje, quase no fim, tão estimulado quanto me senti nos primeiros momentos desta jornada esplêndida". E foi esplêndida mesmo! Foi fecho de ouro a uma vida exemplar e rica em todos os sentidos. Obrigado, mestre, por ter existido!
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
"Admiro o conhecimento pelo conhecimento – aquela filosofia pura, que nos mantém na torre de marfim da meditação, atitude de espírito que faz falta à humanidade. Mas que pode ser adotada se e quando satisfeito lhe estiver o próprio estômago”. Estas palavras foram escritas por um sábio, o professor, jornalista e escritor Francisco Isolino Siqueira, na crônica “Ensino eficiente”, publicada em 11 de março de 1984 no jornal “Correio Popular” de Campinas, do qual, por muitos anos, foi o editor-chefe. Trabalhei por duas décadas nessa empresa jornalística, mas não tive a oportunidade de ser comandado por esse notável intelectual que, a despeito de sua sabedoria, era de uma simplicidade franciscana. Quando fui contratado, ele já havia se afastado desse diário, para dedicar-se a três outras de suas paixões: o magistério, a advocacia e a literatura.
Se no jornalismo não pude privar do seu seguro comando, em duas outras atividades que exerceu tive o privilégio de gozar de sua companhia e de receber, portanto, sua saudável influência. Fui seu aluno na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e lhe devo, portanto, muito do que sei e do que sou. E por uma dessas circunstâncias que a vida nos reserva (neste caso, felicíssima), a partir de 1992 me tornei seu parceiro na Academia Campinense de Letras.
Foi um desses “presentes” inesperados e surpreendentes que o acaso, às vezes, nos proporciona. Não pelo fato de ter reconhecido meus supostos méritos literários (até hoje me questiono se estes existiram ou se existem e, em caso afirmativo, se eram ou se são suficientes para tamanha investidura), mas por subir um patamar intelectual a mais e me tornar parceiro do meu mestre. Que honra! Que dádiva da vida! Que privilégio! Aliás, a honra foi multiplicada, já que me tornei colega não apenas de um, mas de sete dos meus professores (até parece conta de mentiroso).
Quando me tornei acadêmico, Isolino Siqueira (e os demais mestres, que me honraram com seus votos) já era, há muito, membro daquela augusta casa de cultura e de letras. Jamais irei esquecer o entusiasmo e o orgulho que o ilustre professor manifestou quando da minha posse na cadeira de número 14, que venho me empenhando por merecer e por honrar. Por isso, sinto-me acabrunhado, chocado, sumamente triste, com uma sensação desagradabilíssima de vazio, com a notícia de sua morte, ocorrida em 3 de abril de 2012. Sinto como se houvesse perdido um irmão mais velho, amigo de todas as horas, tutor e conselheiro, cuja ausência ninguém conseguirá preencher. E foi, de fato, esse “mano” querido (posto que espiritual) que perdi.
É verdade que, se não posso mais privar da sua afável companhia física – em todas as datas especiais para mim, como meu aniversário, páscoas, natais, anos novos etc., era certeza que receber, invariavelmente, seus telefonemas, ou e-mails, ou ambos, com uma regularidade inigualada pelos parentes mais chegados, inclusive filhos – mas resta-me o consolo de matar as saudades, que já são insuportáveis, nos tantos e tão humanos textos que nos legou. Como por exemplo, a crônica com que abro estas tristes reflexões de hoje. Esta, todavia, é a vantagem dos realizadores. Morre o homem, mas fica sua obra que, por sua sabedoria, sensibilidade, grandeza e até transcendência, merece maior, muito maior divulgação do que tem.
Isolino Siqueira foi, sobretudo, humanista, pessoa solidária preocupada com as injustiças sociais e o sofrimento de tantos, diria, de pelo menos dois terços dos sete bilhões de habitantes do Planeta. Comungo dessa preocupação que aprendi a ter exatamente com esse mestre. Sei que este texto vai soar exagerado e talvez piegas para quem não está sentindo o que sinto neste momento. Pouco importa. Ele é fruto exclusivo da emoção e não do intelecto. Como o mestre, também gostaria de, neste momento, estar encerrado na “torre de marfim da meditação”, indiferente ao que se passa ao redor. Se o fizesse, todavia, estaria sendo desleal com ele e com os ideais que ele me inspirou a abraçar.
Isolino Siqueira defendia uma arte engajada que, sem deixar de ser bela e transcendente, pudesse ser partilhada por “todos”, rigorosamente todos, quer por ricos, quer por pobres, quer por intelectuais, quer por analfabetos, quer por poderosos, quer pelos mais humildes entre os humildes. Utopia? Talvez! Mas é um sonho que vale a pena sonhar.
O mestre escreveu a propósito, na crônica que citei no início destas reflexões: “Para mim tudo deve ser resposta – ou seja, assumir a responsabilidade pela promoção do irmão de quotidiano, aqui e agora, a poesia, a pintura, a escultura, a própria dança. O homem comum deve ser atingido, diretamente, pela mensagem da arte, da ciência, da filosofia ou o conhecimento deve trazer o homem comum à sua altura – à altura do homem e da própria cultura. As bibliotecas devem ter acesso escancarado a todo o gênero de sensibilidade – como as rampas que facilitam a própria caminhada".
O mestre insiste no tema, em tantos outros textos, sempre trazendo novos enfoques, novas colocações, novas e pertinentes observações. A crônica "Linguagem, livros e leitores", publicada em 20 de novembro de 1983, é praticamente o "credo" desse intelectual, que sempre se considerou, sobretudo, professor.
Afirma: "Mantenho-me na vida universitária, ainda como professor, quase depois de vinte e cinco anos, por alguns motivos que me enriquecem, dentre os quais aquele que se contém na lição permanente da madrugada do espírito, o entusiasmo dos jovens, de sua inquietação e dedicação à aventura, obtenho mais resultados do que os ofereço à formação e informação de meus alunos, porque a dedicação que aprendi desenvolver em nome do ensino, na pesquisa, no debate que é fruto da meditação, tudo isto coloca-me, ainda hoje, quase no fim, tão estimulado quanto me senti nos primeiros momentos desta jornada esplêndida". E foi esplêndida mesmo! Foi fecho de ouro a uma vida exemplar e rica em todos os sentidos. Obrigado, mestre, por ter existido!
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