Violação da privacidade
Pedro J. Bondaczuk
A vida privada das pessoas, desde que elas não violem nenhuma lei e não prejudiquem ninguém, deveria ser, e rigorosamente, respeitada. Há toda uma legislação pertinente garantindo esse direito. Contudo, por razões várias, isso, cada vez mais, é desrespeitado, sem que os que violam esse princípio sejam punidos. As maiores vítimas dessa bisbilhotice alheia são, como seria de se esperar, celebridades.
Há quem entenda que o bônus da fama (que a rigor nem mesmo chega a ser um prêmio, pelo menos não sempre, mas, em boa parte das vezes é mais um incômodo, imerecido castigo), traz, como correspondente ônus (e tudo tem um preço), a possibilidade de ter a vida particular descaradamente vasculhada e, principalmente exposta, sem qualquer escrúpulo e respeito, pela imprensa. Há, inclusive, publicações especializadas nesse tipo de notícias, que classificamos genericamente como “fofocas” E, claro, o que “sempre” vem a público são fatos (quando não meros boatos) que causem impacto, ou seja, escândalos.
Nunca li e nem ouvi, por exemplo, a propósito de qualquer celebridade, a divulgação de algum ato nobre seu, como o de manter secretamente alguma instituição de caridade ou outra ação benemerente qualquer. Mesmo estas, caso houvesse, deveriam ser mantidas em sigilo, se fosse a vontade de quem as praticasse. Invariavelmente, no entanto, o que vem à tona é alguma suposta opção sexual que seja cercada de preconceito e por isso implicitamente “condenada” – e na imensa maioria das vezes inverídica – boatos sobre infidelidades conjugais quase sempre sem o mais remoto fundamento e vai por aí afora.
Ademais, não são apenas celebridades que têm a vida privada violada. Pessoas comuns, anônimas do grande público, não raro também passam por esse dissabor, sempre com grandes prejuízos à imagem e à reputação. E isso ocorre a despeito de ser imoral e, sobretudo, ilegal.
Bob Woodward, no extrato do seu livro “Veil: a guerra secreta da CIA”, publicado pelo jornal “The Washington Post” em setembro de 1987 – sobre o qual tive oportunidade de escrever três textos, em tempos recentes – revelou, com base em entrevistas com ex-agentes e com o ex-diretor da Agência Central de Inteligência, William Casey, já falecido, que esta executava operações secretas de espionagem mesmo em países considerados amigos dos Estados Unidos, seus aliados históricos. Nestes casos, conforme tais revelações, o serviço era em geral “terceirizado”. Não posso assegurar se essa prática continua ou não. A presunção, todavia, é positiva. Sendo mais claro, presumo que sim.
Essa espionagem era feita, salvo casos especiais, por agentes locais, contratados pela CIA, após rigorosíssima seleção. Os métodos empregados eram os usuais. O principal era o grampeamento de telefones nas principais repartições públicas dos países em que houvesse alguém liminarmente suspeito de atentar ou de poder atentar contra interesses norte-americanos. A agência de inteligência, nestes Estados “amigos”, presta assistência em assuntos eufemisticamente chamados de segurança nacional. Em contrapartida, recolhe informações que, ao seu alvitre, lhe sejam de alguma utilidade.
De acordo com Bob Woodward, a CIA passa a agir tão logo receba pedido de ajuda. Seus agentes, a partir daí, passam a coletar dados que lhe sejam acessíveis, não importa por que meios. Concentra-se em particular no horário de funcionamento das várias instituições “suspeitas” a serem espionadas, nos nomes e hábitos das pessoas que tenham alguma influência ou que estejam capacitadas a prestar informações aproveitáveis. Os telefones são grampeados e são montados dispositivos de gravação de conversas. Posteriormente, estas são arquivadas numa espécie de dossiê eletrônico de quem esteja sendo espionado.
Os agentes secretos recebem, ainda, outra incumbência de certa importância: a de arregimentar, nos países em que atuam, funcionários locais, com acesso a informações sigilosas e relacionadas a questões de segurança. São as suas “fontes”, que mantêm sob o mais estrito sigilo. Dispondo de dados confiáveis, a CIA manipula os acontecimentos a seu gosto, para obter os resultados pretendidos. Chega a incentivar, ou apoiar, até golpes de Estado, quando estes sejam de seu interesse. Existe, de acordo com Woodward, uma única regra para os agentes que atuam no exterior: não serem apanhados.
William Casey teria dito, em complemento: “Caso apanhem você, negue tudo”. Cada um tem que atuar por conta própria, sem contar com nenhuma ajuda da agência. É um serviço perigoso e compreensivelmente anônimo. Os agentes vivem o tempo todo na corda-bamba. Se a missão for bem sucedida, não recebem nenhuma medalha e nem ao menos um reles elogio. Não fizeram mais do que a obrigação. Se fracassar, os que foram incumbidos dela têm que se virar sozinhos para sair das enrascadas e, se preciso, até, cometer suicídio.
Em 30 de setembro de 1987, as revistas norte-americanas “The New Yorker” e “The Nation”, surpreenderam a opinião pública ao publicarem que vários escritores de renome dos Estados Unidos, entre os quais um bom número de ganhadores de Prêmios Nobel e Pulitzer de Literatura, foram investigados, durante décadas, pelo FBI e pela CIA, por suspeita de subversão. Protegidas pela lei de liberdade de informação, as duas publicações semanais tiveram acesso a 134 dossiês de celebridades do mundo das letras como Ernest Hemmingway, Thomas Wolfe, William Faulkner, Pearl S. Buck e John Steinbeck, entre outras.
Casos pitorescos, e alguns até ridículos, foram mencionados nas respectivas matérias das duas revistas. Um deles foi a da escritora Kay Boyle, que descobriu, surpresa, ao verificar seu dossiê, que teria tido “um romance secreto com Ezra Pound”. Ocorre que, pela data registrada por quem a espionou, ela contava, na ocasião do suposto “caso amoroso”, com somente dez anos de idade!
Isso demonstra, entre outras coisas, que o excesso de zelo de alguns funcionários traz mais complicações e desserviço ao país do que eventuais vantagens. Ademais, de acordo com cláusula pétrea de qualquer Constituição que se preze, ninguém tem o direito, a qualquer pretexto, de invadir a privacidade de quem quer que seja, celebridade ou não. São práticas como essas que desacreditam as instituições e geram apatia e descrença generalizadas nos cidadãos comuns.
Não é praticando atos ostensivamente ilegais que se conseguirá construir fundamentos seguros para sociedades estáveis e sadias, em que prevaleçam a liberdade e a justiça. Por isso, são utilíssimos livros como “Veil: a guerra secreta da CIA”, de Bob Woodward, por mais cruel que possa parecer o fato dele acusar quem não pode se defender, no caso, William Casey. O que se condena não é propriamente o ex-diretor da agência, mas o princípio que norteou suas ações e decisões, que o sobreviveram e tendem a se perpetuar. O homem é punido pela própria mortalidade. Já as instituições, como a CIA...
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
A vida privada das pessoas, desde que elas não violem nenhuma lei e não prejudiquem ninguém, deveria ser, e rigorosamente, respeitada. Há toda uma legislação pertinente garantindo esse direito. Contudo, por razões várias, isso, cada vez mais, é desrespeitado, sem que os que violam esse princípio sejam punidos. As maiores vítimas dessa bisbilhotice alheia são, como seria de se esperar, celebridades.
Há quem entenda que o bônus da fama (que a rigor nem mesmo chega a ser um prêmio, pelo menos não sempre, mas, em boa parte das vezes é mais um incômodo, imerecido castigo), traz, como correspondente ônus (e tudo tem um preço), a possibilidade de ter a vida particular descaradamente vasculhada e, principalmente exposta, sem qualquer escrúpulo e respeito, pela imprensa. Há, inclusive, publicações especializadas nesse tipo de notícias, que classificamos genericamente como “fofocas” E, claro, o que “sempre” vem a público são fatos (quando não meros boatos) que causem impacto, ou seja, escândalos.
Nunca li e nem ouvi, por exemplo, a propósito de qualquer celebridade, a divulgação de algum ato nobre seu, como o de manter secretamente alguma instituição de caridade ou outra ação benemerente qualquer. Mesmo estas, caso houvesse, deveriam ser mantidas em sigilo, se fosse a vontade de quem as praticasse. Invariavelmente, no entanto, o que vem à tona é alguma suposta opção sexual que seja cercada de preconceito e por isso implicitamente “condenada” – e na imensa maioria das vezes inverídica – boatos sobre infidelidades conjugais quase sempre sem o mais remoto fundamento e vai por aí afora.
Ademais, não são apenas celebridades que têm a vida privada violada. Pessoas comuns, anônimas do grande público, não raro também passam por esse dissabor, sempre com grandes prejuízos à imagem e à reputação. E isso ocorre a despeito de ser imoral e, sobretudo, ilegal.
Bob Woodward, no extrato do seu livro “Veil: a guerra secreta da CIA”, publicado pelo jornal “The Washington Post” em setembro de 1987 – sobre o qual tive oportunidade de escrever três textos, em tempos recentes – revelou, com base em entrevistas com ex-agentes e com o ex-diretor da Agência Central de Inteligência, William Casey, já falecido, que esta executava operações secretas de espionagem mesmo em países considerados amigos dos Estados Unidos, seus aliados históricos. Nestes casos, conforme tais revelações, o serviço era em geral “terceirizado”. Não posso assegurar se essa prática continua ou não. A presunção, todavia, é positiva. Sendo mais claro, presumo que sim.
Essa espionagem era feita, salvo casos especiais, por agentes locais, contratados pela CIA, após rigorosíssima seleção. Os métodos empregados eram os usuais. O principal era o grampeamento de telefones nas principais repartições públicas dos países em que houvesse alguém liminarmente suspeito de atentar ou de poder atentar contra interesses norte-americanos. A agência de inteligência, nestes Estados “amigos”, presta assistência em assuntos eufemisticamente chamados de segurança nacional. Em contrapartida, recolhe informações que, ao seu alvitre, lhe sejam de alguma utilidade.
De acordo com Bob Woodward, a CIA passa a agir tão logo receba pedido de ajuda. Seus agentes, a partir daí, passam a coletar dados que lhe sejam acessíveis, não importa por que meios. Concentra-se em particular no horário de funcionamento das várias instituições “suspeitas” a serem espionadas, nos nomes e hábitos das pessoas que tenham alguma influência ou que estejam capacitadas a prestar informações aproveitáveis. Os telefones são grampeados e são montados dispositivos de gravação de conversas. Posteriormente, estas são arquivadas numa espécie de dossiê eletrônico de quem esteja sendo espionado.
Os agentes secretos recebem, ainda, outra incumbência de certa importância: a de arregimentar, nos países em que atuam, funcionários locais, com acesso a informações sigilosas e relacionadas a questões de segurança. São as suas “fontes”, que mantêm sob o mais estrito sigilo. Dispondo de dados confiáveis, a CIA manipula os acontecimentos a seu gosto, para obter os resultados pretendidos. Chega a incentivar, ou apoiar, até golpes de Estado, quando estes sejam de seu interesse. Existe, de acordo com Woodward, uma única regra para os agentes que atuam no exterior: não serem apanhados.
William Casey teria dito, em complemento: “Caso apanhem você, negue tudo”. Cada um tem que atuar por conta própria, sem contar com nenhuma ajuda da agência. É um serviço perigoso e compreensivelmente anônimo. Os agentes vivem o tempo todo na corda-bamba. Se a missão for bem sucedida, não recebem nenhuma medalha e nem ao menos um reles elogio. Não fizeram mais do que a obrigação. Se fracassar, os que foram incumbidos dela têm que se virar sozinhos para sair das enrascadas e, se preciso, até, cometer suicídio.
Em 30 de setembro de 1987, as revistas norte-americanas “The New Yorker” e “The Nation”, surpreenderam a opinião pública ao publicarem que vários escritores de renome dos Estados Unidos, entre os quais um bom número de ganhadores de Prêmios Nobel e Pulitzer de Literatura, foram investigados, durante décadas, pelo FBI e pela CIA, por suspeita de subversão. Protegidas pela lei de liberdade de informação, as duas publicações semanais tiveram acesso a 134 dossiês de celebridades do mundo das letras como Ernest Hemmingway, Thomas Wolfe, William Faulkner, Pearl S. Buck e John Steinbeck, entre outras.
Casos pitorescos, e alguns até ridículos, foram mencionados nas respectivas matérias das duas revistas. Um deles foi a da escritora Kay Boyle, que descobriu, surpresa, ao verificar seu dossiê, que teria tido “um romance secreto com Ezra Pound”. Ocorre que, pela data registrada por quem a espionou, ela contava, na ocasião do suposto “caso amoroso”, com somente dez anos de idade!
Isso demonstra, entre outras coisas, que o excesso de zelo de alguns funcionários traz mais complicações e desserviço ao país do que eventuais vantagens. Ademais, de acordo com cláusula pétrea de qualquer Constituição que se preze, ninguém tem o direito, a qualquer pretexto, de invadir a privacidade de quem quer que seja, celebridade ou não. São práticas como essas que desacreditam as instituições e geram apatia e descrença generalizadas nos cidadãos comuns.
Não é praticando atos ostensivamente ilegais que se conseguirá construir fundamentos seguros para sociedades estáveis e sadias, em que prevaleçam a liberdade e a justiça. Por isso, são utilíssimos livros como “Veil: a guerra secreta da CIA”, de Bob Woodward, por mais cruel que possa parecer o fato dele acusar quem não pode se defender, no caso, William Casey. O que se condena não é propriamente o ex-diretor da agência, mas o princípio que norteou suas ações e decisões, que o sobreviveram e tendem a se perpetuar. O homem é punido pela própria mortalidade. Já as instituições, como a CIA...
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