Thursday, April 05, 2012







Adeus mestre!


Pedro J. Bondaczuk


O homem de espírito somente tem valor reconhecido quando, ou "se", comunica, aos que o rodeiam, suas observações sobre tudo o que o cerca. Se compartilha as idéias que tem com um número máximo de pessoas, que lhe sirvam de "espelho" e reflitam toda essa "luz" que emite. Se tem opinião formada sobre vários assuntos. Se oferece ao mundo, da mesma forma que recebe, suas criações. Se brinda a comunidade com o produto resultante da sua atividade intelectual e da sua sensibilidade.


Tive mestres notáveis, desde as saudosas professorinhas do primário, dona Helena e dona Ester, aos catedráticos da universidade, no caso a Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Um deles, no entanto, tem identidade um pouco maior comigo. Influenciou-me, diria, um pouquinho mais do que os outros. E por uma razão bastante especial. Além de notável professor e de advogado vitorioso, foi também jornalista, a profissão, o sacerdócio, a verdadeira missão de vida que abracei. Mais do que isso: foi editor-chefe do jornal onde desenvolvi a maior parte da minha carreira, o Correio Popular.


E mais ainda: foi um dos melhores e mais criativos cronistas que já conheci (e para minha honra, foi, sobretudo, meu amigo). E olhem que conheço talvez um milhar de mestres da crônica! É, portanto, referencial no gênero em que tenho atuado nos últimos anos, na imprensa nacional. Tem sido modelo constante em que venho me espelhando. Já no tempo em que era seu aluno, eu exercia o jornalismo, como editor e comentarista político do Diário do Povo. Refiro-me ao querido e já saudoso mestre Francisco Isolino Siqueira, que nos deixou, neste 3 de abril de 2012, para ficar “encantado”, que é como Guimarães Rosa dizia que ficavam os escritores quando deixavam o mundo. Não morriam, mas encantavam-se. E mestre Isolino “encantou-se”


Lembro-me de uma citação de Maurice Stans, que ilustra bem o que tento transmitir e que diz: "Dois homens que se cruzam numa estrada podem trocar seus pães ou suas idéias. Se trocarem os pães, cada um seguirá a caminhada com apenas um pão. Se trocarem idéias, cada um prosseguirá na marcha com duas idéias, a própria e a do parceiro. O importante é trocar idéias". A primeira etapa desse intercâmbio ocorreu há anos. Reitero, fui aluno de Isolino Siqueira. Li, reli, pesquisei, comparei e comentei, em vários ocasiões, em textos que não tive coragem de publicar, seus ensinamentos, expressos em centenas de crônicas que colecionei avidamente.


Por que? Porque eram magníficas! Por que? Porque eram simples e humanas! Por que? Porque traziam beleza, transcendência e verdade. Esta era a forma de se comunicar de Isolino Siqueira. Emocionava e ao mesmo tempo respeitava a inteligência do leitor. Comunicava-se, sem querer ostentar a erudição, que de fato possuía. E até que poderia, pois tinha cultura vastíssima. No entanto, usando com precisão e bom gosto as palavras, falava direto ao coração de quem tinha o privilégio de ler seus textos. E incorporava, sem que sequer sentíssemos, suas preciosas mensagens, sempre construtivas, inteligentes e proveitosas, ao nosso patrimônio pessoal.


Tenho algumas pastas repletas de textos publicados por Isolino Siqueira, todos no Correio Popular. São em torno de 300, 400 ou até mais, não tive o capricho de contar. Todas, invariavelmente todas, têm trechos assinalados a caneta, tanto pela verdade e oportunidade dos conceitos emitidos nos parágrafos grifados, quanto pela maneira elegante, sóbria e coloquial em que eles foram comunicados. Dom Bosco afirmou que "Deus nos colocou no mundo para os outros". A recíproca é verdadeira. Ou seja, os outros também existem para nos ajudar, nos atrapalhar, nos apoiar, nos repudiar, nos aprovar ou nos contestar. Daí a comunicação ser tão importante, seja em que plano for. Precisamos é buscar interação. E quanto mais ampla e constante puder ser, tanto melhor.


Concentro-me numa sua crônica, separada aleatoriamente. Seu título é "A Mágica". E no texto, como quem não quer nada, o cronista transmite profundas e preciosas lições de vida. Escreve: "Saltimbanco, nômade, homem de circo, ele aceita todos os apelidos que a mulher lhe põe, menos o de vagabundo. É mágico, trabalha. Em casa, na casa dos outros, no circo. Mas trabalha. E neste mês de Dezembro, com maiúscula mesmo, tem mais serviço do que o ano todo. As festas, comemorações, os movimentos filantrópicos levam-no a clubes, creches, hospitais".


Como se observa, é um texto perfeito, descritivo, com muitos detalhes, um quadro, um painel, uma tela pintada com palavras. Somos induzidos a visualizar a cena, ao mesmo tempo em que conseguimos compreender as motivações e aquilo que o personagem em questão, o mágico, sente. Mais adiante, o cronista universaliza tais sentimentos, ao observar: "Ai de nós todos se não tirássemos desta cartola imensa, das mangas dos paletós, dos bolsos enormes, os badulaques que a princípio nos fazem rir. Não acreditaríamos na própria existência, nos sentimentos, nos homens, nestes irmãos do cotidiano se não fossem os gestos. Cabalísticos, por que não – este do aperto de mão, o olhar-apelo, o olhar-convite, o cafuné, a eficiência do carinho. O verdadeiro mágico não precisa das palavras. São inúteis. Ele se comunica pelos gestos, e que importa a coisa que lhe sai na mão. O importantíssimo é crer que os bolsos, as mangas, a cartola estão vazios. E que o gesto cria, faz surgir, nada mais do que de repente, o pombo, o anel, aquele relógio com a corrente e tudo. E que o beijo faz surgir, cria, recria, define e qualifica a própria vida. Importa o gesto e acreditar”.


Mas esta crônica não é exceção na vasta obra de Isolino Siqueira. É regra. E não pensem que o cronista se esquiva dos temas mais complexos, das situações mais tensas e amargas ou dos terríveis problemas que nos atormentam no dia a dia. Como jornalista e advogado, não se pode jamais lhe imputar a pecha de "alienado". Mas ele consegue enxergar, também, ao contrário de tantos outros cronistas que se julgam os donos da verdade, o lado positivo de cada questão: a saída das crises, ou as lições que elas trazem embutidas, ou o exemplo que se pode extrair delas etc.


Na crônica "O salário do medo", publicada em 18 de julho de 1987, observa: "O trabalho, se nos rouba o lazer de hoje, há de garantir, como em sementeira esplêndida, os frutos dos novos tempos. Se não podemos parar com mais tranqüilidade para examinar os contornos do horizonte iluminado pelo Sol do novo dia, outros hão de compor os poemas que não pudemos redigir. Porque graças a Deus nossas mãos estavam presas às ferramentas da responsabilidade. Na condução do arado que nos deixa sulcos para as sementes da própria vida".


Sobre o relevante papel do professor na sociedade, Isolino Siqueira escreve, na crônica "Não estamos sós", publicada em 16 de outubro de 1983: "Mas, meus amigos, o que é o professor senão aquele que repete as lições que soube vivenciar e, mais do que isto, fruto da pesquisa, da verificação, em verticalidade, de sua própria identidade diante do mundo e dos homens – autor de um molde onde se fundem outros retratos?".


E arremata, de forma brilhante: "Não estamos sós quando bem formados, quando recebemos definidas e definidoras lições de vida, e sentimos a segurança dos que se alimentaram, com proveito das palavras, dos livros, da ciência que se projeta do exemplo social dos homens. Não estamos sós quando aqui dentro, diante da cátedra da memória, podemos ouvir, de novo, a lição permanente de segurança e amor que nos garante o próprio procedimento".


Um dos textos mais comoventes, profundos e verdadeiros que já li, por exemplo, sobre amizade, é de Isolino Siqueira. Trata-se, convenhamos, de tema de difícil abordagem, quase tabu. Poucos se arriscam a escrever sobre o assunto, e raros são os que produzem textos com a inteligência, a graça e a beleza desse nosso cronista. Nosso mestre compôs, a respeito, uma das páginas mais humanas e emotivas e de enorme criatividade já estampadas na imprensa, por saber ser simples e direto, sincero e objetivo. Refiro-me, especificamente, à crônica "Amigos & Cia", da qual transcrevo os seguintes trechos:


"Tomo o lápis para fazer o rol de meus amigos. Por onde devo começar? São tantos os momentos e neles a prova de que a vida é permanente encontro. Por isso desisto. Acontece que gosto de muita gente e às mais das vezes pouco me importa saber se gostam naquela exata proporção à qual o cartesiano chama de equilíbrio. Há amigos, amigos chegados e amigos íntimos. Há os convivas da vida e os convivas da nossa vida. Aqueles que comem o pão e os que ajudam a amassar o trigo. Mas todos são agradáveis.
A flor do ipê dura um só dia. Naquele instante, na mesa do barzinho simpático, o bate-papo, o riso solto, a fofoca estimulante revelam no preciso momento o amigo. Não importa o minuto antes e menos ainda o minuto depois. Quem sabe nos vejamos nunca mais..."


E prossegue: "Mas, há os amigos íntimos nos quais a gente se despeja e se despoja. Aquele que nos reserva um pouquinho mais do próprio coração. Nos olha nos olhos. É capaz de não esconder a primeira decepção e prefere cobrar-nos a verdade para garantir aquele gostoso afeto repartido. E porque se reparte se multiplica e assegura quase sempre a razão da própria vida. É aquele que não tem hora para chegar à sua casa e à sua tristeza. E que não pede para sentar à sua mesa".


Na crônica "A Rua", Isolino Siqueira escreve: "Assim como as casas têm alma, as ruas parecem familiares e cômodas, buliçosas e inquietas, coloridas como rosto infantil ou sérias, encarquilhadas nas ladeiras, abraçadas às árvores, embriagadas de perfume. As ruas têm destino. Começam em algum lugar, terminam na próxima esquina. E, têm nome. Há as ruas largas, como anca de mulher fértil e as estreitas como peito de tísico. Respiram e conversam e de repente dormem".


"E é gostoso provocá-las no silêncio da madrugada. Despertam nas janelas assustadas e espreguiçam-se e bocejam nas manhãs de tanta gente. Há ruas-avenidas, ruas-becos, as que se promovem e as que envelhecem. Cansam de tanto progresso. Algumas me convidam. Gosto de passar por elas. Outras não me olham com bons olhos. Não as evito mas ando depressa".


Em meio a centenas de textos, cada um melhor do que o outro, que li para elaborar estas reflexões, procurei uma oração decisiva, uma única, que caracterizasse, com total precisão, o estilo e a natureza das crônicas de Isolino Siqueira. Após intensa batalha interior, pois havia uma profusão desses exemplos, optei por uma citação, que deveria servir de lema, de dístico, de divisa para todo o intelectual que se preze. Diz: "É preciso amar tudo e todos, aqui e agora, por todos os séculos dos séculos, amém!".


Nós, sua legião de alunos, admiradores e amigos, sobretudo, seus ávidos e fiéis leitores, que já estamos sentindo tanta falta dos seus textos na imprensa – e que doravante a sentiremos muito mais, face sua ausência física, que é irreparável, por haver “se encantado” – confessamos, envaidecidos, por termos tido o privilégio de beber o néctar dos deuses da sua sabedoria e sensibilidade: "Querido professor, inspiradíssimo cronista: nós o amamos, aqui e agora, por todos os séculos dos séculos, amém!"

Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

1 comment:

Anonymous said...

Prezado Pedro,

Gostaria de, mais do que parabenizá-lo pelo texto, agradecer as palavras sensíveis que emocionam neste aniversário de um ano do "encantamento" do meu "vô Xyko" como gostava de ser chamado.

Obrigado mais uma vez e um grande abraço em nome de toda minha família.

obs: acabamos fazendo um blog com algumas das crônicas dele:
http://isolinodesiqueira.blogspot.com.br/

um abraço,
Bruno Siqueira Brocchi
bbrocchi@gmail.com