Pedro J. Bondaczuk
O automóvel, desde que Henry Ford racionalizou sua fabricação, em 1906, criando a primeira linha de montagem em série, deixou de ser objeto de luxo. Transformou-se quase que em bem de primeira necessidade. Para alguns, passou a ser como uma pessoa, como membro muito caro de sua família. Seu advento mudou comportamentos, contribuiu para tornar a vida nas zonas urbanas mais agitada, reduzindo drasticamente o tempo de deslocamento (em especial nas grandes metrópoles). Propiciou, principalmente, profundas transformações no perfil tanto de cidades, quanto de países.
O automóvel sofreu radicais mudanças, tanto na parte aerodinâmica, quanto no desempenho, mais de cem anos depois do início de sua fabricação em série. Ao aumento da velocidade, foram acrescentados itens da maior importância, como segurança, conforto e economia de combustíveis. Pode-se dizer que a produção desse bem revolucionou a própria indústria, no geral.
As linhas de montagem de hoje em nada lembram as de meio século atrás. Milhares de operários tiveram que ceder seus lugares a máquinas, a sofisticados robôs, que hoje executam, com muito maior eficiência e regularidade, o trabalho repetitivo, monótono e perigoso de produção desse bem. Afinal, não se cansam, não perdem o ritmo, não se distraem e nem fazem greves para exigir maiores salários.
Há quem preveja – se não no curto ou sequer no médio, mas no longo prazo – seu declínio, seu ocaso e por uma série de razões. A principal é que, apesar dos avanços para a obtenção de combustíveis “mais limpos”, ou, pelo menos, não tão poluentes, esse veículo segue sendo um dos fatores que mais contribuem para a poluição da atmosfera terrestre, próxima já do limite (isto se ele já não houver sido há muito ultrapassado), agindo decisivamente para acelerar o perigoso processo de aquecimento global, em pleno andamento, e que talvez não haja mais como ser detido, revertido ou mesmo remediado.
Outro fator – e este mais iminente ainda – que pode inviabilizar o futuro de sua majestade, o automóvel, é o esgotamento das reservas mundiais de petróleo. O que a natureza levou alguns milhões, quiçá bilhões de anos para produzir, as últimas oito ou dez gerações de humanos, ávidas, vorazes, imprudentes, exageradas e perdulárias, precisaram, somente, de pouco mais de duzentos anos para esgotar. É certo que as reservas mundiais de óleo cru são suficientes para abastecer o mundo, de combustíveis fósseis, por pouco menos de um século, conforme estimativas confiáveis. Isso, antes de se iniciar a exploração massiva de novas reservas recém descobertas, como a do Pré-sal, no Brasil. A pergunta que se faz, porém, é outra. “A atmosfera terrestre suporta mais cem anos de massiva poluição?” Temo que não suporte não somente tudo isso, mas nem mesmo uma década.
Combustíveis alternativos, como o álcool anidro, muito menos poluentes, vêm sendo desenvolvidos com relativo sucesso. Todavia, embora se trate de energia renovável, esse produto traz outro inconveniente. Requer vastíssimas extensões de terra para o cultivo da cana-de-açúcar e, com isso, há o risco de faltar solo fértil para a produção de alimentos, justo numa época em que a população mundial já passou da cifra de sete bilhões e não pára de crescer.
“Mas, afinal de contas, o que o automóvel tem a ver com literatura, que é a finalidade deste espaço?”, perguntará, com certeza, aquele sujeito ranheta e chato, ávido por encontrar, no que fazemos, pretextos para criticar. Posso dizer: tem muito. Até um movimento literário, que permanece vivíssimo, teve nesse veículo automotivo (e no que ele representou e representa em termos de comportamento) uma de suas fontes de inspiração. Diria que a principal. Refiro-me ao futurismo.
Essa vertente cultural modernista nem mesmo é tão nova. Data do início do século passado, o vigésimo da Era Cristã. Originou-se do “Manifesto Futurista”, escrito pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, que o publicou no jornal francês “Le Figaro”, na edição de 20 de fevereiro de 1909. Esse texto consistia de onze itens. Era, como seria de se esperar, uma proclamação de ruptura com o passado e não somente na forma de fazer e expressar arte (e, claro, literatura), mas no que dizia respeito ao comportamento das pessoas. O principal ponto assinalado nesse documento era uma conclamação para que o homem se identificasse com a máquina, com a velocidade – e aí entra, claro, o automóvel – e, por conseqüência, com o dinamismo do novo século que então nascia.
É fascinante fazer um estudo a respeito, para entender a razão de como se originou nosso atual comportamento compulsivo em relação às máquinas e à mais cobiçada e valorizada delas. Claro que não irei detalhá-lo neste ínfimo espaço de reflexão diária. Apenas menciono-o como sugestão para que você pesquise a respeito. Fontes não faltam para isso. Resta saber se há tempo disponível para avaliá-las e, principalmente, se há interesse para tal.
Reproduzo, abaixo – com a providencialíssima ajuda da enciclopédia eletrônica “Wiquipédia” – os cinco primeiros itens, dos onze, do manifesto de Marinetti:
1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade.
2. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia.
3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco.
4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.
5. Nós queremos entoar hinos ao homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada também numa corrida sobre o circuito da sua órbita.
Viram? Não exagerei quando ressaltei a importância do automóvel na vida moderna. Há pessoas – e vocês, certamente, conhecem muitas assim – que “amam” mais seus veículos motorizados até do que membros da própria família. Há aqueles que, caso você ameace, ou ofenda, sua esposa ou filha ou até a mãe, reagem moderadamente, de maneira até relativamente polida. Mas que, se você ousar encostar um dedo em seu querido automóvel, ou pior, riscar sua pintura, ou muito pior ainda, amassar sua lataria, ficam possessos, possuídos de incontrolável fúria, de inusitado instinto homicida. Não raro, chegam, até mesmo, a matar o incauto que age com tamanha temeridade e imprudência. Estou exagerando? Vocês sabem que não.
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