Quando
Borges me fez mudar de opinião
Pedro
J. Bondaczuk
Às
vezes, lemos, casualmente, um livro de determinado escritor e
detestamos de cara. Achamo-lo confuso, empolado, sem nexo e não nos
damos ao trabalho de ler mais nada do que ele escreveu. E mais,
ficamos surpresos ao vermos que ele é o “queridinho” da crítica
especializada e passamos a duvidar ora do nosso critério de
avaliação, ora o dos que por dever de ofício devem ser rigorosos
em seus juízos. Se não formos turrões, relemos o livro que nos
causou má impressão, mas com outros olhos. Às vezes, mudamos nosso
julgamento anterior e passamos a admirar o que antes detestávamos,
sobretudo após a leitura de outros livros desse tal escritor. Foi o
que aconteceu, grosso modo, comigo, por exemplo, em relação a Franz
Kafka.
Quando
li “O processo” pela primeira vez, achei-o inverossímil, maluco,
absurdo, um bla-bla-blá enjoado e sem sentido, que nada tinha a ver
com a literatura que me encantava (e que me encanta). Desde então,
sempre que o nome do escritor vinha à baila, nas rodas de amigos, eu
desconversava, recusava-me a opinar e mudava de assunto, para não
demonstrar meu repúdio ao seu estilo. Meu conceito, a propósito de
Franz Kafka, todavia, começou a mudar depois que li um artigo de
Jorge Luís Borges, intitulado “Escrita atemporal”, publicado no
jornal “Folha de S. Paulo”, na edição de 10 de dezembro de
1983, escrito cinco meses aantes por ocasião do centenário de
nascimento do escritor checo, de origem judia (ele nasceu em 3 de
julho de 1883).
No
citado texto, meu guru literário confessou que também não gostou
de Kafka, na primeira vez que leu algo dele. Mas fez um mea-culpa
anos depois (não revelou quantos), após a leitura de seus livros,
mas despido de preconceitos e com olhar atento somente às suas
virtudes. E detectou muitas, que não havia enxergado antes. Borges
inicia o referido artigo da seguinte forma: “Conheci a obra de
Franz Kafka em 1917 e agora confesso que fui indigno da obra de Franz
Kafka. Eu o li em uma revista expressionista, profissionalmente
moderna, que havia se consagrado a inventar a falta de pontuação, a
falta de rimas, a falta de maiúsculas e o abuso de metáforas
simuladas e aparatosas palavras compostas próprias dos jovens desse
tempo e talvez dos jovens de todos os tempos. Entre esse estalido
impresso, figurava um apólogo, contraposto à corrente, que levava
a assistência de Franz Kafka e que considerei inexplicavelmente
insípido. Recordo-me que li uma fábula sua, escrita de maneira
simples, e me apareceu incompreensível sua publicação (...)”.
Nesse
mesmo primeiro parágrafo, porém Borges reconhece que estava errado.
Admite que cometeu erro de avaliação, no entanto, do qual se
redimiu. “Passei frente à revelação e não a percebi”,
confessou. E acrescentou: “Mais tarde seus livros chegaram às
minhas mãos e então me dei conta da minha insensibilidade e do meu
erro imperdoável”. A mesma coisa ocorreu comigo. Mas somente após
a leitura desse artigo de Jorge Luís Borges, que me abriu os olhos e
me induziu a ler praticamente toda a obra do escritor checo. Desde
então, li tudo de Franz Kafka traduzido para o português. Entendi
sua proposta e, afinal, encantei-me com ela. Concordo com os que
ressaltam não apenas suas originalidade, mas sua genialidade.
Borges
concluiu, sobre seu colega checo: “A grandeza de Kafka é evidente
e seu gênio indiscutível”. É é mesmo! Ademais, o autor de
“Aleph” vai mais longe e classifica-o como “o escritor menos
controvertido deste século (o século XX, evidentemente) e talvez o
primeiro, ainda que em nada, ou quase nada, se pareça a este
século”. Borges lembra daqueles “clássicos” que, por seu
estilo e temática, simbolizaram toda uma época. Escreve: “A
leitura de outros escritores nos leva a pensar na época em que
escreveram. Se tomarmos o caso de Shakespeare, temos que pensar
continuamente que escreveu para o palco e não para a leitura; temos
que pensar na política, na decadência da Espanha, da Armada
Invencível. Se tomarmos o caso de Dante, não podemos esquecer sua
teologia nem seu amor por Virgílio. Se tomarmos o caso de Walt
Whitman, não podemos prescindir do sonho da democracia que
professava. Tampouco podemos ler Hugo sem nos afastarmos da história
da França. Kafka é uma exceção nessa regra tão comum na história
da literatura. É um escritor a quem podemos ler atemporalmente
(...)”. Pois é, ele segue sendo atualíssimo, embora sua obra
tenha já mais de um século.
Franz
Kafka não escreveu para o teatro. Todavia, alguns de seus livros
foram adaptados para os palcos, viraram peças que foram encenadas
milhares e milhares de vezes nas mais diversas partes do mundo com
grande sucesso. Um desses casos específicos é “O processo”, que
contesta, metaforicamente, o sistema de administração de justiça
Planeta afora (sobretudo nas tantas ditaduras que ainda há por aí)
tanto no seu tempo, quanto (e cada vez mais) nos tempos atuais.
Para
quem não leu o citado livro ou leu e já esqueceu do que trata,
resumo, grosso modo, seu enredo.
“O
processo” narra um caso insólito e absurdo, envolvendo um
procurador de banco identificado como Joseph K. O personagem em
questão acaba envolvido numa querela absurda e destruído por uma
burocracia burra e tacanha que predominava na sociedade em que vivia.
O enredo é uma crítica (figurada, simbólica) ao que de fato
ocorria no meio social do autor, na Praga da sua juventude. Certo
dia, Joseph K., tão logo acordou, recebeu em sua casa a visita de
dois agentes da polícia. Estes foram comunicar-lhe que era réu de
um processo judicial e que por esta razão estava sendo detido para
julgamento. O homem insistiu em jurar inocência, assegurou que não
havia feito nada de errado e que deveria haver algum engano ou erro
de identidade . Em vão.
No
tribunal, para onde foi conduzido, reinava absoluta anarquia. Todos
deblateravam e ninguém se entendia. Apesar de falarem a mesma
língua, parecia que cada um falava um idioma próprio. O juiz
encarregado do caso confundiu Joseph K. com um pintor de paredes; O
réu aproveitou a confusão para fazer um longo discurso em defesa
própria. Denunciou, entre outras coisa, a monstruosidade que era
todo aquele aparato judicial. O tribunal não conseguiu sequer
identificar quem era de fato o verdasdeiro e suposto infrator que
pretendia punir. E para piorar as coisas, nem caracterizou o delito
cometido. As palavras do réu, sua sólida e lógica argumentação e
toda a sua retumbante retórica, no entanto, não surtiram efeito.
Mostraram-se inúteis. Caíram em ouvidos moucos.
Joseph
K. não conseguiu fazer com que o absurdo processo fosse
interrompido e arquivado, por total inconsistência. O advogado do
procurador justificou o insólito julgamento com este incompreensível
e confuso argumento: “A hierarquia da justiça compreende graus
infinitos, entre os quais se perdem os próprios indiciados”. Em
suma, ninguém encontrou uma forma para deter o processo, apesar da
sua inconsistência e absurdo. Ele havia começado, não importa se
por equívoco, e portanto, deveria continuar até o desfecho. Ninguém
explicou coisa alguma ao réu, mas o caso teve continuidade,
arrastando-se, mediante trâmites burocráticos (mas sem sentido) nas
várias instâncias do aparato judiciário, por um longo tempo. No
fim das contas, Joseph K. acabou por morrer nas mãos de dois
funcionários, como sendo o pintor de paredes que nunca foi. Mas o
sistema queria que ele fosse. E teve que ser! Afinal, “a hierarquia
da justiça nunca se engana, mesmo quando está de fato enganada”.
Depois
de ler, reler, analisar, comparar e meditar sobre toda a obra do nem
sempre compreendido escritor checo, de ascendência judia, cheguei,
finalmente, à mesma conclusão a que Jorge Luís Borges chegou, com
uma pequena diferença. Para o meu guru literário, “Kafka é o
maior escritor clássico deste tumultuado e estranho século” (o
XX, obviamente). Para mim, porém, ele permanece atemporal, como o
argentino o classificou no título do seu lúcido artigo, atualíssimo
em suas metafóricas críticas ao comportamento tantas vezes
irracional do ainda muito primitivo “Homo Sapiens”, que a rigor
nem é tão “sapiens” quando supõe.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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