Sunday, September 03, 2017

Quando Borges me fez mudar de opinião

Pedro J. Bondaczuk

Às vezes, lemos, casualmente, um livro de determinado escritor e detestamos de cara. Achamo-lo confuso, empolado, sem nexo e não nos damos ao trabalho de ler mais nada do que ele escreveu. E mais, ficamos surpresos ao vermos que ele é o “queridinho” da crítica especializada e passamos a duvidar ora do nosso critério de avaliação, ora o dos que por dever de ofício devem ser rigorosos em seus juízos. Se não formos turrões, relemos o livro que nos causou má impressão, mas com outros olhos. Às vezes, mudamos nosso julgamento anterior e passamos a admirar o que antes detestávamos, sobretudo após a leitura de outros livros desse tal escritor. Foi o que aconteceu, grosso modo, comigo, por exemplo, em relação a Franz Kafka.

Quando li “O processo” pela primeira vez, achei-o inverossímil, maluco, absurdo, um bla-bla-blá enjoado e sem sentido, que nada tinha a ver com a literatura que me encantava (e que me encanta). Desde então, sempre que o nome do escritor vinha à baila, nas rodas de amigos, eu desconversava, recusava-me a opinar e mudava de assunto, para não demonstrar meu repúdio ao seu estilo. Meu conceito, a propósito de Franz Kafka, todavia, começou a mudar depois que li um artigo de Jorge Luís Borges, intitulado “Escrita atemporal”, publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, na edição de 10 de dezembro de 1983, escrito cinco meses aantes por ocasião do centenário de nascimento do escritor checo, de origem judia (ele nasceu em 3 de julho de 1883).

No citado texto, meu guru literário confessou que também não gostou de Kafka, na primeira vez que leu algo dele. Mas fez um mea-culpa anos depois (não revelou quantos), após a leitura de seus livros, mas despido de preconceitos e com olhar atento somente às suas virtudes. E detectou muitas, que não havia enxergado antes. Borges inicia o referido artigo da seguinte forma: “Conheci a obra de Franz Kafka em 1917 e agora confesso que fui indigno da obra de Franz Kafka. Eu o li em uma revista expressionista, profissionalmente moderna, que havia se consagrado a inventar a falta de pontuação, a falta de rimas, a falta de maiúsculas e o abuso de metáforas simuladas e aparatosas palavras compostas próprias dos jovens desse tempo e talvez dos jovens de todos os tempos. Entre esse estalido impresso, figurava um apólogo, contraposto à corrente, que levava a assistência de Franz Kafka e que considerei inexplicavelmente insípido. Recordo-me que li uma fábula sua, escrita de maneira simples, e me apareceu incompreensível sua publicação (...)”.

Nesse mesmo primeiro parágrafo, porém Borges reconhece que estava errado. Admite que cometeu erro de avaliação, no entanto, do qual se redimiu. “Passei frente à revelação e não a percebi”, confessou. E acrescentou: “Mais tarde seus livros chegaram às minhas mãos e então me dei conta da minha insensibilidade e do meu erro imperdoável”. A mesma coisa ocorreu comigo. Mas somente após a leitura desse artigo de Jorge Luís Borges, que me abriu os olhos e me induziu a ler praticamente toda a obra do escritor checo. Desde então, li tudo de Franz Kafka traduzido para o português. Entendi sua proposta e, afinal, encantei-me com ela. Concordo com os que ressaltam não apenas suas originalidade, mas sua genialidade.

Borges concluiu, sobre seu colega checo: “A grandeza de Kafka é evidente e seu gênio indiscutível”. É é mesmo! Ademais, o autor de “Aleph” vai mais longe e classifica-o como “o escritor menos controvertido deste século (o século XX, evidentemente) e talvez o primeiro, ainda que em nada, ou quase nada, se pareça a este século”. Borges lembra daqueles “clássicos” que, por seu estilo e temática, simbolizaram toda uma época. Escreve: “A leitura de outros escritores nos leva a pensar na época em que escreveram. Se tomarmos o caso de Shakespeare, temos que pensar continuamente que escreveu para o palco e não para a leitura; temos que pensar na política, na decadência da Espanha, da Armada Invencível. Se tomarmos o caso de Dante, não podemos esquecer sua teologia nem seu amor por Virgílio. Se tomarmos o caso de Walt Whitman, não podemos prescindir do sonho da democracia que professava. Tampouco podemos ler Hugo sem nos afastarmos da história da França. Kafka é uma exceção nessa regra tão comum na história da literatura. É um escritor a quem podemos ler atemporalmente (...)”. Pois é, ele segue sendo atualíssimo, embora sua obra tenha já mais de um século.

Franz Kafka não escreveu para o teatro. Todavia, alguns de seus livros foram adaptados para os palcos, viraram peças que foram encenadas milhares e milhares de vezes nas mais diversas partes do mundo com grande sucesso. Um desses casos específicos é “O processo”, que contesta, metaforicamente, o sistema de administração de justiça Planeta afora (sobretudo nas tantas ditaduras que ainda há por aí) tanto no seu tempo, quanto (e cada vez mais) nos tempos atuais.

Para quem não leu o citado livro ou leu e já esqueceu do que trata, resumo, grosso modo, seu enredo.

O processo” narra um caso insólito e absurdo, envolvendo um procurador de banco identificado como Joseph K. O personagem em questão acaba envolvido numa querela absurda e destruído por uma burocracia burra e tacanha que predominava na sociedade em que vivia. O enredo é uma crítica (figurada, simbólica) ao que de fato ocorria no meio social do autor, na Praga da sua juventude. Certo dia, Joseph K., tão logo acordou, recebeu em sua casa a visita de dois agentes da polícia. Estes foram comunicar-lhe que era réu de um processo judicial e que por esta razão estava sendo detido para julgamento. O homem insistiu em jurar inocência, assegurou que não havia feito nada de errado e que deveria haver algum engano ou erro de identidade . Em vão.

No tribunal, para onde foi conduzido, reinava absoluta anarquia. Todos deblateravam e ninguém se entendia. Apesar de falarem a mesma língua, parecia que cada um falava um idioma próprio. O juiz encarregado do caso confundiu Joseph K. com um pintor de paredes; O réu aproveitou a confusão para fazer um longo discurso em defesa própria. Denunciou, entre outras coisa, a monstruosidade que era todo aquele aparato judicial. O tribunal não conseguiu sequer identificar quem era de fato o verdasdeiro e suposto infrator que pretendia punir. E para piorar as coisas, nem caracterizou o delito cometido. As palavras do réu, sua sólida e lógica argumentação e toda a sua retumbante retórica, no entanto, não surtiram efeito. Mostraram-se inúteis. Caíram em ouvidos moucos.

Joseph K. não conseguiu fazer com que o absurdo processo fosse interrompido e arquivado, por total inconsistência. O advogado do procurador justificou o insólito julgamento com este incompreensível e confuso argumento: “A hierarquia da justiça compreende graus infinitos, entre os quais se perdem os próprios indiciados”. Em suma, ninguém encontrou uma forma para deter o processo, apesar da sua inconsistência e absurdo. Ele havia começado, não importa se por equívoco, e portanto, deveria continuar até o desfecho. Ninguém explicou coisa alguma ao réu, mas o caso teve continuidade, arrastando-se, mediante trâmites burocráticos (mas sem sentido) nas várias instâncias do aparato judiciário, por um longo tempo. No fim das contas, Joseph K. acabou por morrer nas mãos de dois funcionários, como sendo o pintor de paredes que nunca foi. Mas o sistema queria que ele fosse. E teve que ser! Afinal, “a hierarquia da justiça nunca se engana, mesmo quando está de fato enganada”.



Depois de ler, reler, analisar, comparar e meditar sobre toda a obra do nem sempre compreendido escritor checo, de ascendência judia, cheguei, finalmente, à mesma conclusão a que Jorge Luís Borges chegou, com uma pequena diferença. Para o meu guru literário, “Kafka é o maior escritor clássico deste tumultuado e estranho século” (o XX, obviamente). Para mim, porém, ele permanece atemporal, como o argentino o classificou no título do seu lúcido artigo, atualíssimo em suas metafóricas críticas ao comportamento tantas vezes irracional do ainda muito primitivo “Homo Sapiens”, que a rigor nem é tão “sapiens” quando supõe.

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