Monday, September 25, 2017

A Ilha da Solidão

Pedro J. Bondaczuk

Remexendo velhos papéis, dia desses, eis que topei com o texto de um comentário que fiz, em 2 de junho de 1982, pelos microfones potentes e prestigiosos da então Rádio Educadora de Campinas (atual Rádio Bandeirantes de Campinas), a propósito da batalha decisiva, que estava prestes a ser travada pelas tropas argentinas e britânicas, pela posse do Arquipélago das Malvinas (que para os ingleses sempre se chamou e é chamado ainda de “Ilhas Falklands”).

Na ocasião, nos anos finais da ditadura militar no Brasil, falar de política, publicamente, já era por si só temeridade. Imaginem fazer comentários a respeito nos meios de comunicação e, principalmente, através do rádio, cuja concessão poderia ser cassada a qualquer momento e a emissora fechada! Exigia-se cautela, responsabilidade e... alta dose de sorte para não se comprometer e não ter problemas com a censura. E, pior, para não se indispor com os agentes da ditadura.

Na época, eu era um dos produtores (o sub-editor) do jornal das 18 horas da emissora e tinha a responsabilidade de, em cinco dias da semana, de segunda a sexta-feira, apresentar um comentário diário, de cinco minutos de duração, sobre o principal fato do dia, tanto da cidade de Campinas, quanto do Brasil e do mundo, e nas áreas da política e da economia. Era um desafio e tanto! Exerci essa atividade por dois anos consecutivos, o que comprova, por si só, que me saí bem da empreitada.

Vivíamos tempos difíceis, dificílimos e tensos na ocasião. Tive a felicidade, porém, de atravessá-los incólume, sem nunca ser vetado pela censura e nem ser convocado (o que poderia custar-me ou anos de prisão ou até a perda da vida) a dar explicações em algum quartel pelas opiniões emitidas, que poderiam ser consideradas, facilmente, “subversivas”, mesmo que não fossem. E não eram de fato. Era jornalismo puro. Valeram-me, na época, a devida isenção jornalística que sempre se requer de um profissional de imprensa, atendo-me, rigorosamente, aos fatos, mesmo emitindo opiniões a respeito e... sobretudo, sorte. Muita sorte.

Tomo a liberdade de reproduzir, abaixo, o citado comentário, de há 29 anos, não por seu eventual valor literário (embora ache que tenha algum), mas por se tratar de um documento de um dos fatos mais dramáticos daquela época, caracterizada, por si só, por dramaticidade e riscos, em que não somente o Brasil, mas o Planeta, viviam sob enorme tensão. O mundo, por exemplo, testemunhava o auge da Guerra Fria, em que as superpotências de então – Estados Unidos e União Soviética, lideradas pelos “falcões” Ronald Reagan e Leonid Brezhnev, respectivamente – levavam ao grau máximo a irresponsável e perdulária corrida armamentista nuclear.Quanto dinheiro foi jogado fora na produção massiva dessas armas! Qualquer “faísca”, qualquer fato aleatório, mesmo que aparentemente inocente, poderia, então, deflagrar a provavelmente definitiva e última Terceira Guerra Mundial. Escrevi e li através do microfone da emissora o seguinte texto, naquele já tão longínquo 2 de junho de 1982:

Argentinos e britânicos já combatem, praticamente, nos arrabaldes da capital das Ilhas Malvinas. Travam dura luta, que em alguns momentos chega a ser corpo a corpo, a apenas dez quilômetros dessa minúscula cidade, na verdade mero vilarejo, com não mais de três mil habitantes. Nos últimos sessenta dias, essa localidade, até agora desconhecida no mundo, trocou três vezes de nome.

Era Port Stanley, até o dia 2 de abril, quando tropas argentinas ocuparam-na, dando início ao atual conflito. Dessa data, até 5 de abril, foi chamada de Puerto Belgrano, em homenagem a um militar argentino do século passado. Finalmente, foi rebatizada para Puerto Argentino. Agora, esse vilarejo está a pouco, muito pouco, de voltar às mãos e nome primitivos. E de ser administrado por aqueles que o ocupavam nos últimos 149 anos, até que a atual junta militar argentina desse início à atual aventura.

A batalha que se desenvolve em torno desta aldeia, contudo, está fadada a entrar para a história da insanidade política deste século. O desalento, expressado, hoje, pelo secretário-geral das Nações Unidas, Javier Perez de Cuellar, quanto a uma saída diplomática de última hora, que evite o aguardado confronto decisivo, é sintomático. O líder da ONU admitiu, tacitamente, o fracasso de todas as suas gestões para um cessar-fogo. Disse não acreditar mais que a trégua ainda seja possível. Para ele, as posições inflexíveis, tanto dos britânicos, quanto dos argentinos, inviabilizam qualquer entendimento.

De Londres, a primeira-ministra Margaret Thatcher, como que querendo se desculpar, ou se justificar antecipadamente perante as famílias dos soldados, fez sua derradeira oferta à Argentina. Afirmou, em pronunciamento pela televisão, que ordenará um cessar-fogo imediato, desde que o governo argentino se comprometa a retirar todas as suas tropas do arquipélago invadido em um prazo máximo de 14 dias. Como isto não vai acontecer... Comentando a oferta, a ‘Dama de Ferro’ admitiu o óbvio: que é ‘uma pena que tantos jovens venham a morrer nessa guerra’. Só faltava ela exultar com a carnificina. Talvez secretamente, em seu íntimo, até exulte, quem sabe.

Pena não é bem o termo que deva ser aplicado a essa inútil carnificina que se desenha. As palavras mais apropriadas para esse conflito seriam ‘loucura’, ‘insensatez’, ‘crime contra a humanidade’ e outras muito mais fortes, aplicáveis aos dois contendores. Argentinos e britânicos são igualmente culpados, bem como os que apoiam as respectivas posições belicistas. Mas a senhora Thatcher lançou água gelada sobre a fervura, se é que a sua ‘oferta’ de paz pudesse ser levada a sério. Concluiu seu pronunciamento pela TV afirmando que não acreditava que os argentinos aceitariam sua derradeira proposta. Ela aceitaria:?

Dessa forma, os campos nevados da Ilha Soledad, a ‘Ilha da Solidão’ em nosso idioma, já quase nos limites da inóspita Antártida, vão se tornar rubros com o sangue de jovens que, no cumprimento do seu dever de executar o que seus superiores hierárquicos ordenarem, lá deixaram, estão deixando ou vão deixar seu bem mais precioso: a vida. E tanto sacrifício por nada. Morrerão anônimos.

Seus corpos serão enterrados em valas comuns, alguns tão deformados, que jamais virão a ser sequer identificados. Restarão esquecidos, sós, sem nome, na solidão gelada da ‘Ilha da Solidão’. Terão, certamente, mães, esposas e filhas esperando pela sua volta, que nunca irá acontecer. Os parentes jamais terão certeza se morreram ou permanecem vivos em algum lugar. Enquanto a guerra estiver em andamento, for manchete nos noticiários de rádios, televisões, jornais e revistas, seu sacrifício pela pátria será citado, enfatizado e glorificado, com palavras bombásticas, sonoras, retóricas, mas despidas de sinceridade e de conteúdo, por políticos oportunistas, de olho apenas na manutenção do poder.

Alguns, neste caso oficiais (coronéis ou generais), poderão até ganhar monumentos ou dar nomes a ruas ou praças. Os poderosos precisam, posto que temporariamente, enfatizar o seu sacrifício. Não que acreditem na sua necessidade, mas para justificar o injustificável: a sua insensibilidade, cinismo e intransigência. No entanto, tudo isso apenas será possível – homenagens, cerimônias religiosas e reverência nacional –, enquanto a guerra for destaque na imprensa.

Depois, quando os acontecimentos do Atlântico Sul forem superados por novas questões e por novos conflitos – que serão ‘consumidos’, como todos os outros, por um público ávido por desgraças, bestializado e imerso num egoísmo ferrenho e sem limites, encarando as carnificinas como se fossem de mentirinha, mera ficção –, desses jovens soldados, que lutam por alguma coisa que sequer sabem definir o que é, não restarão sequer lembranças. Nenhum pensamento vai mais se voltar para o seu sacrifício inútil, evitável e insensato. Seus nomes e experiências serão apagados da memória popular, como se jamais tivessem existido.

Em suas covas rasas, talvez marcadas apenas por uma tosca cruz de madeira, se tanto, em todas as primaveras, nesse recanto gelado e cinzento, na solitária Ilha da Solidão, nas Malvinas, brotarão delicadas e frágeis flores rubras, da cor do seu sangue generoso. Ninguém as plantou.

Os moradores da região evitarão até de passar pelo local, por temerem os ‘fantasmas’ da sua ingratidão. A natureza, apenas ela, não esquecerá o sacrifício anônimo desses jovens. E a vida vai continuar. Até o dia em que a loucura dos homens atingir o paroxismo e levá-los a plantar gigantescos ‘cogumelos’ de fogo nos quatro quadrantes do mundo. Ou, o que é improvável, até que a razão venha a preponderar sobre os instintos, quando só então a violência terá uma chance (posto que mínima) de ser banida da Terra e do espírito humano. Caso dê a lógica, no entanto, este planeta azul e frágil será todo ele uma inóspita e silenciosa 1Ilha da Solidão’, na imensidão do espaço...”


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