Masoquismo da natureza
Pedro J. Bondaczuk
As cigarras voltaram, anunciando, com seu canto estridente e
monótono, o início da primavera, após um inverno, sobretudo,
chuvoso, pelo menos na região de Campinas, onde resido. Escrevo este
texto em outubro de 2009. Aliás, neste ano, choveu além da conta
por aqui. Li, nos jornais locais, uma informação, fornecida pelo
Instituto Agronômico, que me assustou, e não sem razão. Foi a de
que no mês de julho as chuvas foram as mais copiosas e intensas
desde 1943. Ou seja, desde que nasci, há já distantes 66 anos.
Algo, portanto, está desregulado na natureza. Está aí uma
comprovação, para os que ainda não acreditam (e há muitos e
muitos céticos e alienados que não creem), que o “efeito estufa”
está em andamento, ameaçador e presente, com potencial de estragos
impossível de se dimensionar.
E o que fazem os homens, mesmo diante de evidências tão claras de
desarranjo no delicadíssimo mecanismo da natureza? Poluem, poluem e
poluem. Depredam, depredam e depredam. Destroem, destroem e destroem.
Como não rir, portanto, diante da caracterização da nossa espécie
como “Homo Sapiens”? Que sabedoria é esta que ataca a biosfera,
provavelmente o único espaço no universo (pelo menos o único
conhecido e comprovado) que possibilita a existência de vida? É
algo que nunca consegui compreender quando criança e que compreendo
menos ainda agora.
Seria só alienação ou é Thanatos agindo para conduzir a
humanidade à extinção? O historiador britânico Arnold Toynbee
escreveu um instigante ensaio a respeito, que começa da seguinte
forma: “O termo ‘biosfera’ foi criado por Teilhard de Chardin.
É um termo novo, exigido por nossa chegada a um estágio mais
avançado no progresso de nosso conhecimento científico e poder
material. A biosfera é uma película de terra firme, água e ar que
envolve o globo (ou globo virtual) de nosso planeta Terra. É
o único habitat atual — e, tanto quanto podemos prever
hoje, é também o único habitat jamais viável de todas as
espécies de seres vivos que conhecemos, a humanidade inclusive”.
Será que não passa por nenhuma cabeça, notadamente a daquelas
pessoas com poder de decisão, que os recursos existentes neste nosso
domo cósmico são limitados? É tão difícil de entender que todo o
lixo gerado, sólido, líquido ou gasoso, fica por aqui mesmo,
emporcalhando esse nosso lar da Via Láctea? É tão complicado de
compreender que somos, apenas, uma espécie de vida, mas não a única
e, talvez, nem mesmo a mais importante? É, parece que é.
Arnold Toybee prossegue em suas considerações: “A biosfera é
estritamente limitada em seu volume e, por isso, contém um estoque
também limitado dos recursos de que as várias espécies de seres
vivos têm de lançar mão para se manterem. Alguns desses recursos
são renováveis; outros, insubstituíveis. Qualquer espécie que
utilize demais seus recursos renováveis ou esgote os insubstituíveis
condena-se à extinção. O número de espécies extintas que
deixaram vestígios no registro geológico é assombrosamente elevado
em comparação com o número das ainda existentes”.
Pois é, esse tipo de informação é veiculado a todo o momento.
Milhões de pessoas, mundo afora, fazem essa constatação, mas... De
prático mesmo, não se faz nada, absolutamente nada, rigorosamente
nada a não ser um monótono e fútil bla-bla-blá, para preservar
pelo menos a biosfera, que nos assegura a possibilidade de viver. Por
que? Responda você, meu caro leitor. Eu não tenho a resposta.
O homem, desde que surgiu sobre a Terra – sobre essa película
sumamente frágil e delgada que é a biosfera, insisto – resolveu
“brincar de Deus”. Tomou em suas mãos a prerrogativa de decidir
quem deveria seguir vivendo e quem não. Entendeu que a natureza era
imperfeita e resolveu “aperfeiçoá-la”. Mexeu, inclusive, onde
não devia e agora está metido em sérios, em seriíssimos apuros.
Toynbee afirma, no citado ensaio: “O homem tem sido a mais bem
sucedida de todas as espécies em dominar os demais constituintes da
biosfera, animados e inanimados. No despertar de sua percepção
consciente o homem encontrou-se à mercê da natureza não-humana;
decidiu-se a fazer de si o senhor da natureza não-humana e avançou
progressivamente em direção à consecução desse objetivo. Nos
últimos 10.000 anos, desafiou a seleção natural, substituindo-a
pela seleção humana na medida de suas possibilidades. Promoveu a
sobrevivência de plantas e animais que domesticou para suas próprias
necessidades e empreendeu o extermínio de algumas outras espécies
que considerou nocivas. Rotulou essas espécies indesejáveis de
"ervas daninhas" "vermes" e, ao lhes dar esses
rótulos pejorativos, informou que fará todo o possível para
exterminá-las. Na medida em que o homem conseguiu substituir a
seleção’ natural pela seleção humana, reduziu o número de
espécies sobreviventes”.
Pelo andar da carruagem, não tardará para que não tenhamos mais
cigarras (entre tantos outros milhões de seres vivos). Afinal, o
homem considera-as nocivas aos seus propósitos, por atacarem as
raízes das árvores. Ademais, não lhe servem para nada. Não são
alimentos, não são animais domésticos e não se deixam domar por
esta arrogante criatura.
Mas não serão apenas as cigarras que irão desaparecer. O avanço
do “efeito estufa” é um alerta para essa criatura que adora
“brincar de Deus”, mas que não sabe o que fazer com as
conseqüências dessa sua brincadeira. A rigor, a natureza é a
grande culpada. Por que? Por haver permitido o surgimento e o
desenvolvimento deste supremo predador. Talvez por isso, esteja
prestes a destruí-lo. O escritor português, Casimiro Brito, fez a
seguinte constatação, em um de seus livros: “Vocação masoquista
da natureza: consentiu que o vírus humano a invadisse e
sobrevivesse”. Certamente, já colocou em marcha o mecanismo para
corrigir esse erro. Mas ao eliminar o homem, é provável que
elimine, também, todo e qualquer vestígio de vida. Inclusive
plantas, peixes, insetos, animais, amebas, bactérias, vírus e todos
os demais seres viventes. E as cigarras, logicamente.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
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