Paciência salvadora
Pedro J. Bondaczuk
O
suicídio do comandante do veleiro soviético, Alexei Grevscenko, de 42 anos,
cujo corpo foi encontrado, enforcado e pendurado numa árvore num bosque do
balneário uruguaio de Punta del Este, anteontem, é um tema que, apesar de mórbido, se presta à
meditação. Qual a razão que leva determinadas pessoas, em geral bem situadas na
vida, sem problemas financeiros, com nível de instrução de razoável para bom, a
darem cabo de si próprios?
Que mecanismo emocional se desregula a tal ponto de
levar o instinto de sobrevivência (o erótico) a ser sobrepujado pelo de
destruição (o tânico)? Os estudiosos do assunto dizem que, em geral, os que
cometem esse ato de agressão extrema contra si próprios não querem, na verdade,
morrer.
O que desejam é chamar a atenção para os seus
problemas; para a sua imensa solidão; para a carência afetiva que os domina;
para o seu enorme desamparo emocional. Como nos tempos atuais as pessoas estão
se isolando cada vez mais, se auto-encarcerando, se mantendo solitárias mesmo
quando estão no meio de uma multidão, esses seres carentes e psicologicamente
frágeis encontram cada vez mais dificuldades para se fazerem ouvidos.
Seus obstáculos de relacionamento crescem dia a dia,
na medida em que aumenta o seu isolamento a ponto de serem levadas ao desespero
e, em casos extremos, a atentarem contra a própria vida. E pensar que na
maioria das vezes uma boa conversa (e somente isso) as salvaria! Nós já tivemos
a oportunidade (que reputamos de privilégio) – no exercício diário de tentativa
de diálogo com o maior número possível de pessoas, através das páginas deste
jornal – de ter um caso dramático, desse tipo, pela frente.
Há algum tempo, recebemos, na redação do Correio
Popular, um telefonema estranho, que a princípio pensamos não passar de mais um
trote, mais uma das tantas brincadeiras de mau gosto a que os jornalistas e os
que lidam diariamente com o público estão sujeitos no seu cotidiano, tão
insólita era a conversa do interlocutor.
O impulso inicial, lógico, foi igual ao de todos os
que recebem ligações inoportunas, de galhofeiros que se divertem brincando com
coisas sérias. Ou seja, foi de desligar, irritado, o aparelho, não sem antes
dizer ao engraçadinho poucas e boas ou mesmo apenas algum sonoro palavrão, até
para desestimular novas brincadeiras do tipo.
Uma espécie de intuição, no entanto, fez com que
ouvíssemos aquilo que a pessoa do outro lado da linha tentava dizer, de forma
confusa, como se estivesse alcoolizada ou drogada. Dava para se perceber o
desespero, a angústia e o estado de confusão mental do interlocutor. Para
simular tudo isso, convenhamos, teria que ser um ator magnífico, mestre dos
palcos e das telas.
Em suma, foi uma conversa longa, de mais de duas
horas, entremeada de choro e de ameaças de dar cabo da própria vida, por parte
de quem estava do outro lado da linha (e do outro lado da razão, ao que
parece). O começo da conversa foi muito confuso. Mal dava para entender o que
essa pessoa dizia. Ela afirmava sobretudo, e reiterava a todo o momento, como
se fosse um disco quebrado, que a vida era uma droga, que não tinha mais
nenhuma razão para viver e que se mataria, ameaçando desligar o telefone e dar
um tiro na cabeça. Mas não desligou.
Apesar de estarmos com o horário de fechamento da edição
estourando (e quem trabalha em jornal sabe o que isso significa), decidimos dar
corda ao interlocutor, induzindo-o a falar. Depois de meia hora de monólogo,
pois só ele falava, pudemos perceber que essa pessoa desesperada já havia se
tornado pelo um pouquinho mais racional. Muito do que dizia já fazia algum
sentido.
Em resumo: um momento de atenção, um lampejo de
compreensão dos problemas alheios, sem ridicularizá-los e nem assumir ares de
“sabe tudo” que distribui conselhos a quem não os pede e nem quer (ademais
inúteis nas circunstâncias) pode ter salvado uma vida.
Se salvou, ou não, nunca pudemos ter certeza. Mas
não houve nenhuma notícia de suicídio na cidade nos dias que se seguiram a esse
incidente. Portanto, se quem nos contatou tinha mesmo a intenção de se matar (e
tudo leva a crer que sim), deve, certamente, ter desistido dessa maluquice. E
se o fez, algum mérito nós tivemos.
Essa vida pode ter sido salva como, por este
impaciente e quase nunca compreensivo jornalista ? Gastando dinheiro? Executando
alguma tarefa extraordinária ou sobreumana? Tentando diagnosticar e curar
alguma neurose, mesmo sem entender nada de psiquiatria ou de psicologia? Não!
Claro que não! A única atitude adotada e que pode ter dado resultado
surpreendente foi a da “paciência para ouvir” o desabafo do interlocutor! Custa
sermos humanos ao menos uma vez por dia?! Ou ao menos uma vez na vida?!
(Artigo publicado na página 14, Internacional, do
Correio Popular, em 13 de outubro de 1989).
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