Saturday, May 16, 2015

Paciência salvadora



Pedro J. Bondaczuk


O suicídio do comandante do veleiro soviético, Alexei Grevscenko, de 42 anos, cujo corpo foi encontrado, enforcado e pendurado numa árvore num bosque do balneário uruguaio de Punta del Este, anteontem, é um  tema que, apesar de mórbido, se presta à meditação. Qual a razão que leva determinadas pessoas, em geral bem situadas na vida, sem problemas financeiros, com nível de instrução de razoável para bom, a darem cabo de si próprios?

Que mecanismo emocional se desregula a tal ponto de levar o instinto de sobrevivência (o erótico) a ser sobrepujado pelo de destruição (o tânico)? Os estudiosos do assunto dizem que, em geral, os que cometem esse ato de agressão extrema contra si próprios não querem, na verdade, morrer.

O que desejam é chamar a atenção para os seus problemas; para a sua imensa solidão; para a carência afetiva que os domina; para o seu enorme desamparo emocional. Como nos tempos atuais as pessoas estão se isolando cada vez mais, se auto-encarcerando, se mantendo solitárias mesmo quando estão no meio de uma multidão, esses seres carentes e psicologicamente frágeis encontram cada vez mais dificuldades para se fazerem ouvidos.

Seus obstáculos de relacionamento crescem dia a dia, na medida em que aumenta o seu isolamento a ponto de serem levadas ao desespero e, em casos extremos, a atentarem contra a própria vida. E pensar que na maioria das vezes uma boa conversa (e somente isso) as salvaria! Nós já tivemos a oportunidade (que reputamos de privilégio) – no exercício diário de tentativa de diálogo com o maior número possível de pessoas, através das páginas deste jornal – de ter um caso dramático, desse tipo, pela frente.

Há algum tempo, recebemos, na redação do Correio Popular, um telefonema estranho, que a princípio pensamos não passar de mais um trote, mais uma das tantas brincadeiras de mau gosto a que os jornalistas e os que lidam diariamente com o público estão sujeitos no seu cotidiano, tão insólita era a conversa do interlocutor.

O impulso inicial, lógico, foi igual ao de todos os que recebem ligações inoportunas, de galhofeiros que se divertem brincando com coisas sérias. Ou seja, foi de desligar, irritado, o aparelho, não sem antes dizer ao engraçadinho poucas e boas ou mesmo apenas algum sonoro palavrão, até para desestimular novas brincadeiras do tipo.

Uma espécie de intuição, no entanto, fez com que ouvíssemos aquilo que a pessoa do outro lado da linha tentava dizer, de forma confusa, como se estivesse alcoolizada ou drogada. Dava para se perceber o desespero, a angústia e o estado de confusão mental do interlocutor. Para simular tudo isso, convenhamos, teria que ser um ator magnífico, mestre dos palcos e das telas.

Em suma, foi uma conversa longa, de mais de duas horas, entremeada de choro e de ameaças de dar cabo da própria vida, por parte de quem estava do outro lado da linha (e do outro lado da razão, ao que parece). O começo da conversa foi muito confuso. Mal dava para entender o que essa pessoa dizia. Ela afirmava sobretudo, e reiterava a todo o momento, como se fosse um disco quebrado, que a vida era uma droga, que não tinha mais nenhuma razão para viver e que se mataria, ameaçando desligar o telefone e dar um tiro na cabeça. Mas não desligou.

Apesar de estarmos com o horário de fechamento da edição estourando (e quem trabalha em jornal sabe o que isso significa), decidimos dar corda ao interlocutor, induzindo-o a falar. Depois de meia hora de monólogo, pois só ele falava, pudemos perceber que essa pessoa desesperada já havia se tornado pelo um pouquinho mais racional. Muito do que dizia já fazia algum sentido.

Em resumo: um momento de atenção, um lampejo de compreensão dos problemas alheios, sem ridicularizá-los e nem assumir ares de “sabe tudo” que distribui conselhos a quem não os pede e nem quer (ademais inúteis nas circunstâncias) pode ter salvado uma vida.

Se salvou, ou não, nunca pudemos ter certeza. Mas não houve nenhuma notícia de suicídio na cidade nos dias que se seguiram a esse incidente. Portanto, se quem nos contatou tinha mesmo a intenção de se matar (e tudo leva a crer que sim), deve, certamente, ter desistido dessa maluquice. E se o fez, algum mérito nós tivemos.

Essa vida pode ter sido salva como, por este impaciente e quase nunca compreensivo jornalista ? Gastando dinheiro? Executando alguma tarefa extraordinária ou sobreumana? Tentando diagnosticar e curar alguma neurose, mesmo sem entender nada de psiquiatria ou de psicologia? Não! Claro que não! A única atitude adotada e que pode ter dado resultado surpreendente foi a da “paciência para ouvir” o desabafo do interlocutor! Custa sermos humanos ao menos uma vez por dia?! Ou ao menos uma vez na vida?!

(Artigo publicado na página 14, Internacional, do Correio Popular, em 13 de outubro de 1989).


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