Incessante conflito
Pedro
J. Bondaczuk
A vida, esse fenômeno
maravilhoso – até aqui detectada, apenas, em nosso planetazinha azul (embora se
suspeite, posto que sem provas, que exista em profusão em tantas outras partes
do universo) – é caracterizada por incessante conflito. O desejável seria que
se caracterizasse pela cooperação, mas não é. Algumas espécies fazem o papel de
presas de outras, que são, por seu turno, suas predadoras. E isso em todos os
casos, sem exceção. Os seres que não são carnívoros se alimentam de vegetais,
que também são espécimes vivos. Conclusão: Vida só se alimenta de vida. Disso
não há como fugir. Não conheço uma única espécie do reino animal que se
alimente de minerais. Não existe.
O homem é,
simultaneamente, predador e presa. Mais o primeiro, evidentemente, do que o
segundo. O fato de contar com habilidades únicas (ditadas pela razão) faz com
que tenha criado armas e desenvolvido as mais diversas formas de se proteger de
eventuais agressores. Todavia, caso se descuide, pode, perfeitamente, se
transformar (e muitas vezes se transforma mesmo) em “comida” de vários
predadores, como tigres, leões, jacarés, tubarões etc.etc.etc. Ademais, a
despeito de sua inteligência, está, o tempo todo, na mira de seres invisíveis a
olho nu (vírus e bactérias), sempre à espreita para adoecê-lo e, afinal,
matá-lo. Raros de nós escapamos da sua sanha destrutiva (se é que alguém
escape). Mais cedo ou mais tarde, ao menor descuido, somos afetados por
desarranjos orgânicos, a que damos o nome genérico de “doenças”, que nos
suprimem a vida.
Admito que este
raciocínio é sombrio e mórbido, posto que rigorosamente realístico. As coisas
no mundo ocorrem inexoravelmente desta forma, não há como negar. Queiram ou
não, a vida é contínuo conflito, tanto entre espécies, quanto entre nós,
humanos. No homem, tomado individualmente, há, igualmente, batalha contínua,
entre seus próprios instintos, sobretudo entre os dois básicos: o de
sobrevivência (individual e da espécie) e o de destruição (própria ou de
terceiros). O “pai” da psicanálise, Sigmund Freud, tratou muito bem desse
conflito, sobretudo no livro “O mal-estar da civilização”. Identificou dois
princípios antagônicos, ou seja, as pulsões de vida e de morte, que denominou,
respectivamente, com os nomes de duas figuras mitológicas da Grécia clássica,
“Eros” e “Thanatos”.
O tema é, também,
fartamente explorado em Literatura, sob aspectos vários, em geral metafóricos,
sobretudo em poesia (embora não só nela). Pudera! Os escritores não iriam
perder um filão tão farto, não é mesmo? Eu mesmo aventurei-me por esse vasto
campo temático. Tanto que o meu livro mais recente, concluído há questão de
semanas, tem o título de “Eros e Thanatos”. Nele, apresento as trajetórias de
um grupo de escritores, dos mais conhecidos e consagrados, que amaram muito,
foram por uma razão ou outra infelizes no amor e... deixaram-se levar pelo
instinto de destruição. Deram cabo das próprias vidas, vencidos pela sanha
destrutiva de “Thanatos”. Mas o tema é mais comum na poesia. A propósito,
navegando na internet, encontrei este belíssimo poema, intitulado “Eterno
pensar eterno querer”, de autoria de Adriana Muller, que faço questão de
partilhar com você, paciente e fiel leitor:
“Thanatos e Eros brigam pelo meu corpo
Ambos querem minha posse
Minha psique atormentada
Acomoda-se e adormece
Embebida no desejo do desejo esquecer
Sonhos vem a mente
Sonhos de momentos ardentes
E da tristeza que quero esconder
Morrer talvez fosse à saída
Pois enquanto houver em mim
O menor sopro de vida
Continuarei a pensar em você”.
Outro poema pertinente
(posto que com a ausência de “Thanatos”), encontrei na obra do prolífico poeta
português Fernando Pessoa. Seu título é “Eros e Psique” e diz:
“Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia”..
Poderia citar, ainda,
muitas e muitas outras obras literárias e respectivos autores, que trataram da
guerra contínua entre Eros e Thanatos, mas não o farei, até por falta de
espaço. Quem sabe, oportunamente, as traga à baila, mas em outra ocasião. Por
ora, deixo-lhes, a título de sugestão para reflexão, esta realidade: a vida é
mais frágil e efêmera do que ousamos aceitar. E se constitui (infelizmente),
antes e acima de tudo, em incessante conflito.
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