Saturday, May 23, 2015

A concretização do sonho que o sonhador não viu

Pedro J. Bondaczuk

O discurso que o pastor Martin Luther King Junior –  o maior líder negro norte-americano na luta pelos direitos civis – pronunciou, em 28 de agosto de 1963, nos degraus do Lincoln Memorial, em Washington, diante de mais de duzentas mil pessoas, é uma das mais belas, profundas e importantes peças oratórias que conheço. Passou para a História com o título de “Eu tenho um sonho”. Foi um pronunciamento profético, premonitório, que previu o que afinal aconteceu. Pena que o orador não viveu para testemunhar sua concretização. Foi assassinado, na sacada de um hotel da cidade de Memphis, pouco antes do início de mais uma marcha pelos direitos civis. Era 4 de abril de 1968. O mundo todo recebeu, surpreso e consternado, a notícia.

O assassinato foi assumido por James Earl Ray, que confessou ser o autor do tiro fatal. A exemplo do que ocorreu com Lee Harvey Oswald, na morte de John Kennedy, pouca gente acreditou que o suposto assassino tenha, realmente, cometido o crime. Mas... E a dúvida acentuou-se ainda mais quando, muitos anos depois, Ray negou a autoria do assassinato, posto que não justificasse a razão da confissão anterior. Pretendeu encobrir quem? Racistas doentios, mas poderosos, não faltaram (e ainda não faltam) para terem cometido ato tão torpe e tão covarde. Todos eles, mesmo que não tenham apertado o gatilho do tiro fatal, têm que ser considerados, em conjunto, os verdadeiros matadores desse mártir das liberdades civis. Afinal, criaram clima de ódio propício para que o assassinato fosse perpetrado.

Pensei em fazer este registro em 20 de janeiro – que desde 1986 é feriado nacional nos Estados Unidos, estabelecido como “O dia de Martin Luther King Junior”. Contudo, como essa data coincide com o meu aniversário... perdi-me entre abraços e felicitações e acabei não escrevendo nada a propósito. Mas... antes tarde do que nunca. Tenho profundo respeito e imensa admiração pelos idealistas, pelos corajosos, por aqueles que sacrificam a própria vida pela realização de um sonho coletivo. Quem diria que esse homem simples, mas com incomparável capacidade de liderança, iria se transformar, um dia, numa espécie de herói nacional, que de fato foi?!

Afinal, Martin Luther King foi, ao longo de toda sua vida pública, alvo de investigação do FBI. O então todo-poderoso chefe dessa agência federal norte-americana, John Edgar Hoover, considerava-o um “perigoso radical”. Suspeitava que fosse comunista, numa época em que ser, mesmo que remotamente, simpatizante dessa ideologia era o “crime dos crimes” nos Estados Unidos, num período em que a Guerra Fria estava no auge. Agentes gravaram seus telefonemas. Espalharam boatos de supostas infidelidades conjugais. Ameaçaram-no de morte diversas vezes. E, em carta anônima, “sugeriram-lhe” que cometesse suicídio. O que esses “robôs” fanatizados pensariam hoje, caso estivessem vivos, ao constatarem que o alvo de suas perseguições hoje foi alçado à condição de “heroi nacional”, inclusive com um dia por ano destinado a reverenciar sua memória?

Luther King, pelo que foi e pelo que representa, merece todo um livro e não somente um texto simples, como este. Mas tem que ser lembrado, nem que seja com apenas um parágrafo, como exemplo de coragem, de fé, de determinação e de inabalável convicção em um ideal. Nada melhor, para homenageá-lo (e reverenciá-lo) do que reproduzir, pelo menos a parte final, do seu memorável e histórico discurso. E é o que faço, abaixo, até como obrigação:

“Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.

Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livre. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.

"Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto. Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos, de qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade! E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro. E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire.

Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York. Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania. Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado. Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia.

Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee. Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi. Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade.

E quando isto acontecer, quando nós permitirmos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro: ‘Livre afinal, livre afinal. Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres afinal’".

Pena que este heroico sonhador não viu seu sonho de igualdade, fraternidade e solidariedade, seu ideal de irrestrita liberdade, se concretizar, pelo menos em parte. Falta muito, muito mesmo para que isso se efetive integralmente, não só nos Estados Unidos, mas em toda a Terra, nestes tempos de violência, corrupção e incertezas. Mas gerações e gerações deverão sua concretização, mesmo que nunca passe de parcial, à esperança, à determinação, ao idealismo e à fé que moveram esse homem notável e excepcional.

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