Nossos cenários são
incompletos
Pedro
J. Bondaczuk
Os grandes feitos
humanos da atualidade, aquelas obras de engenharia e aquelas tantas conquistas
da ciência, da medicina e, sobretudo, da tecnologia, que assombrariam os
antepassados, fazendo-os crer que fossem frutos da imaginação ou de delírio,
estranhamente, não são apropriados pelos artistas das mais diversas artes do
nosso tempo. Aliás, são sim, posto que rarissimamente. Quando são, todavia,
tardam a ser. E quando inspiram obras artísticas – pinturas, esculturas,
literatura etc. – o são, estranhamente, apenas quando já estão ultrapassadas.
Ainda hoje, raramente encontro, na descrição de cenários de novelas, romances
ou contos, ambientados neste início de século XXI, menções, por exemplo, à
televisão, ao rádio e mesmo ao cinema, como se essas maravilhas tecnológicas
não existissem. Equipamentos como celulares, computadores, tabletes etc. são
mais raros ainda. Por que?
Sei que essa minha
colocação é um tanto polêmica e que muitos a considerarão bobagem. Paciência!
Em conversa com vários amigos escritores, esse aspecto invariavelmente gera,
sempre que o trago à baila, acaloradas discussões. A maioria atribui à minha
suposta desatenção quando da leitura dos vários livros recentes, o fato de eu
não detectar qualquer menção a esses símbolos da modernidade. Quando desafio-os
a citarem algum romance, conto ou novela em que os autores citem, mesmo que
ocasionalmente, essas coisas todas, hoje tão triviais em nossas vidas, meus
interlocutores se enrolam e são incapazes fazê-lo. Não citam uma única e reles
obra literária em que haja tais referências. Não digo que elas não existam.
Existem e eu mesmo já citei, aqui neste espaço, quem, quando e como as citou.
Quem me desafia e contesta, porém... é incapaz de mencionar um único caso
concreto, embora garanta, com ênfase, que essas maravilhas são onipresentes na
literatura contemporânea. Não são!
E por que faço tanta
questão que coisas tão triviais do cotidiano sejam registradas em nossas obras
literárias? Por uma razão bem objetiva e até óbvia. Não me canso de enfatizar que
o escritor é testemunha ocular do tempo em que vive. Ao contrário do
jornalista, não escreve “para o dia seguinte”, mas “para a eternidade” (caso
isso fosse ou seja possível, sabe-se lá). Como um leitor do futuro, digamos do
século XXII, irá visualizar esta nossa época, se não a descrevermos com
detalhes? Afinal, não se concebe que o homem do futuro (caso, claro, a
humanidade tenha um e não se destrua antes, por sua insensatez e imbecilidade)
ficará tecnologicamente estagnado no que criou até aqui. Provavelmente – ouso
afirmar que certamente – todas estas invenções atuais, que pasmariam os
antepassados – serão tidas e havidas como meras bugigangas imprestáveis, como
coisas obsoletas, antigas e ultrapassadas pelos nossos descendentes do século
XXII (supondo, claro, que existam e que alguém as registre para seu
conhecimento).
Não saberíamos nada do
século XIX, ou dos primeiros anos do século XX (apenas para citar períodos mais
recentes), se escritores como Machado de Assis, Victor Hugo, Honoré Balzac,
Fedor Dostoievsky, Charles Dickens, Edgar Alan Poe e vai por aí afora, não
descrevessem, com clareza, perícia e objetividade, como eram as cidades do seu
tempo: o que as pessoas vestiam, como moravam, como se locomoviam etc.etc. etc.
Não sei onde está a dificuldade de dotarmos nossos personagens das mesmas
facilidades tecnológicas de que usufruímos. Qual a razão, por exemplo, deles
não terem televisão em casa – equipamento tão trivial que dia desses vi um
sem-teto, que improvisou um “cafofo” no vão de um viaduto aqui da minha cidade,
como sua “moradia”, que não tinha, óbvio, o essencial, nem mesmo cama para
dormir, dispor de um televisor portátil, que provavelmente encontrou no lixo,
mas que era seu e estava ali? Exagero? Não! Fiquem atentos quando andarem pelas
ruas (e a capacidade de observação é característica básica de bons escritores)
que vocês verão coisas iguais.
O que impede que nossos
personagens tenham celulares (hoje quase todo mundo tem)? Ou que contem com
computadores, mesmo que dos já defasados? Ou que tenham perfis no Facebook, no
Twitter ou em outra qualquer das tantas redes sociais? O que impede? Como
tornar os enredos minimamente verossímeis sem nada disso? Qual o motivo de
nossos personagens não gostarem de futebol, não torcerem fanaticamente por
algum time, ou não apreciarem vôlei, basquete ou outro dos tantos esportes
praticados na atualidade? Não são coisas comuns do nosso tempo? E por que não
aparecem nos enredos que urdimos? O que o potencial leitor do século XXII
pensará de seus antepassados do século XXI? Que retroagiu às cavernas, à era da
pedra lascada? Provavelmente sim! Eu, no lugar deles, concluiria isso.
Por que raros mencionam
as grandes obras de engenharia da atualidade? Em que romance, conto ou novela,
por exemplo, você já leu a mais remota referência ao Eurotúnel, que atravessa,
debaixo do mar, a profundidades de até 240 metros, a distância que separa a
Grã-Bretanha da França por ferrovia sob o Canal da Mancha? Aliás, nem mesmo os
meios de comunicação sequer citam essa que é uma das maiores obras de
engenharia de todos os tempos, rivalizando com as pirâmides de Gizé, no Egito,
com a Muralha da China e com o Coliseu de Roma, até por ser infinitamente mais
útil e mais complexa do que elas. Por que nenhum escritor menciona, nem mesmo de
passagem, o Eurotúnel? Aliás, tenho certeza que a imensa maioria dos
brasileiros sequer sabe que ele existe e para o que serve. Imaginem o potencial
leitor do século XXII!!! Por ser tão polêmico, certamente voltarei a tratar
desse tema.
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