Thursday, May 14, 2015

Nossos cenários são incompletos

Pedro J. Bondaczuk

Os grandes feitos humanos da atualidade, aquelas obras de engenharia e aquelas tantas conquistas da ciência, da medicina e, sobretudo, da tecnologia, que assombrariam os antepassados, fazendo-os crer que fossem frutos da imaginação ou de delírio, estranhamente, não são apropriados pelos artistas das mais diversas artes do nosso tempo. Aliás, são sim, posto que rarissimamente. Quando são, todavia, tardam a ser. E quando inspiram obras artísticas – pinturas, esculturas, literatura etc. – o são, estranhamente, apenas quando já estão ultrapassadas. Ainda hoje, raramente encontro, na descrição de cenários de novelas, romances ou contos, ambientados neste início de século XXI, menções, por exemplo, à televisão, ao rádio e mesmo ao cinema, como se essas maravilhas tecnológicas não existissem. Equipamentos como celulares, computadores, tabletes etc. são mais raros ainda. Por que?

Sei que essa minha colocação é um tanto polêmica e que muitos a considerarão bobagem. Paciência! Em conversa com vários amigos escritores, esse aspecto invariavelmente gera, sempre que o trago à baila, acaloradas discussões. A maioria atribui à minha suposta desatenção quando da leitura dos vários livros recentes, o fato de eu não detectar qualquer menção a esses símbolos da modernidade. Quando desafio-os a citarem algum romance, conto ou novela em que os autores citem, mesmo que ocasionalmente, essas coisas todas, hoje tão triviais em nossas vidas, meus interlocutores se enrolam e são incapazes fazê-lo. Não citam uma única e reles obra literária em que haja tais referências. Não digo que elas não existam. Existem e eu mesmo já citei, aqui neste espaço, quem, quando e como as citou. Quem me desafia e contesta, porém... é incapaz de mencionar um único caso concreto, embora garanta, com ênfase, que essas maravilhas são onipresentes na literatura contemporânea. Não são!

E por que faço tanta questão que coisas tão triviais do cotidiano sejam registradas em nossas obras literárias? Por uma razão bem objetiva e até óbvia. Não me canso de enfatizar que o escritor é testemunha ocular do tempo em que vive. Ao contrário do jornalista, não escreve “para o dia seguinte”, mas “para a eternidade” (caso isso fosse ou seja possível, sabe-se lá). Como um leitor do futuro, digamos do século XXII, irá visualizar esta nossa época, se não a descrevermos com detalhes? Afinal, não se concebe que o homem do futuro (caso, claro, a humanidade tenha um e não se destrua antes, por sua insensatez e imbecilidade) ficará tecnologicamente estagnado no que criou até aqui. Provavelmente – ouso afirmar que certamente – todas estas invenções atuais, que pasmariam os antepassados – serão tidas e havidas como meras bugigangas imprestáveis, como coisas obsoletas, antigas e ultrapassadas pelos nossos descendentes do século XXII (supondo, claro, que existam e que alguém as registre para seu conhecimento).

Não saberíamos nada do século XIX, ou dos primeiros anos do século XX (apenas para citar períodos mais recentes), se escritores como Machado de Assis, Victor Hugo, Honoré Balzac, Fedor Dostoievsky, Charles Dickens, Edgar Alan Poe e vai por aí afora, não descrevessem, com clareza, perícia e objetividade, como eram as cidades do seu tempo: o que as pessoas vestiam, como moravam, como se locomoviam etc.etc. etc. Não sei onde está a dificuldade de dotarmos nossos personagens das mesmas facilidades tecnológicas de que usufruímos. Qual a razão, por exemplo, deles não terem televisão em casa – equipamento tão trivial que dia desses vi um sem-teto, que improvisou um “cafofo” no vão de um viaduto aqui da minha cidade, como sua “moradia”, que não tinha, óbvio, o essencial, nem mesmo cama para dormir, dispor de um televisor portátil, que provavelmente encontrou no lixo, mas que era seu e estava ali? Exagero? Não! Fiquem atentos quando andarem pelas ruas (e a capacidade de observação é característica básica de bons escritores) que vocês verão coisas iguais.

O que impede que nossos personagens tenham celulares (hoje quase todo mundo tem)? Ou que contem com computadores, mesmo que dos já defasados? Ou que tenham perfis no Facebook, no Twitter ou em outra qualquer das tantas redes sociais? O que impede? Como tornar os enredos minimamente verossímeis sem nada disso? Qual o motivo de nossos personagens não gostarem de futebol, não torcerem fanaticamente por algum time, ou não apreciarem vôlei, basquete ou outro dos tantos esportes praticados na atualidade? Não são coisas comuns do nosso tempo? E por que não aparecem nos enredos que urdimos? O que o potencial leitor do século XXII pensará de seus antepassados do século XXI? Que retroagiu às cavernas, à era da pedra lascada? Provavelmente sim! Eu, no lugar deles, concluiria isso.

Por que raros mencionam as grandes obras de engenharia da atualidade? Em que romance, conto ou novela, por exemplo, você já leu a mais remota referência ao Eurotúnel, que atravessa, debaixo do mar, a profundidades de até 240 metros, a distância que separa a Grã-Bretanha da França por ferrovia sob o Canal da Mancha? Aliás, nem mesmo os meios de comunicação sequer citam essa que é uma das maiores obras de engenharia de todos os tempos, rivalizando com as pirâmides de Gizé, no Egito, com a Muralha da China e com o Coliseu de Roma, até por ser infinitamente mais útil e mais complexa do que elas. Por que nenhum escritor menciona, nem mesmo de passagem, o Eurotúnel? Aliás, tenho certeza que a imensa maioria dos brasileiros sequer sabe que ele existe e para o que serve. Imaginem o potencial leitor do século XXII!!! Por ser tão polêmico, certamente voltarei a tratar desse tema.


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