Poesia e verão
Pedro J. Bondaczuk
A poesia é intemporal (ou atemporal, como queiram), certo? Sempre entendi que fosse. Todavia, minha convicção começa a vacilar a esse respeito. Vejam o caso das quatro estações do ano. Há inúmeros poemas sobre a primavera (principalmente), outono e inverno, que se prestam, a caráter, até para criativas metáforas. E o verão? Sempre achei que fosse, igualmente, assunto recorrente de poetas, notadamente deste nosso “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”. Dia desses, todavia, descobri, surpreso, que não é bem assim.
Tudo começou num encontro informal com um grupinho de amigos, todos escritores (portanto amantes inveterados de literatura) e a maioria poetas. Conversa vai, conversa vem e não tardou que viesse à baila nosso tema predileto, aquele que nos identifica e une. Nem preciso dizer qual é, não é mesmo? Só poderia ser um. E, de fato, era. Literatura, sem dúvida nenhuma. Como um assunto puxa outro, logo alguém observou que o verão (e fazia um calor desgraçado naquele momento) é tema até que raro na poesia. Discordei. E para posar de sabido, citei, de imediato, a magnífica composição de Tom Jobim, “As águas de março”. Fui mais longe, ousei cantarolar os primeiros versos, com meu vozeirão de locutor, superdesafinado, que não se presta nem um pouquinho ao canto.
Choveram protestos. Aliás, foram gerais. A princípio pensei que meus amigos estavam protestando “só” por causa da minha pífia interpretação. Não era. Ou pelo menos, não era “só” por isso. “Calma lá, não estamos nos referindo à MPB, mas à poesia”, alguém esclareceu. “Mas como?!”, perguntei admirado, “vocês não consideram ‘As águas de março’ poesia?!”, exclamei, sem esconder irritação e desapontamento. “Claro que é, mas não é a esse tipo que estamos nos referindo”, alguém respondeu. E outro amigo colocou outra restrição a mais: “Também não vale citar poetas nordestinos que tratem do assunto de seca”.
Tentei lembrar-me de algum poema que tratasse de verão, mas não me veio nenhum à memória. Pedi um tempo e prometi pesquisar a respeito, mesmo com tantos afazeres programados. Daria um jeito. E, de fato, dei. Pesquisei cerca de um milhar de poemas, de uns 300 poetas diferentes e não encontrei quase nenhum que versasse sobre o verão. Claro que se trata de um universo muito pequeno para pesquisa, mas creio que, se o tema fosse muito explorado, eu encontraria uma quantidade maior de composições.
Para não me dar por vencido, no encontro seguinte puxei de cara o assunto. E, de imediato, li este poema de Mário Quintana:
O dia abriu seu pára-sol bordado
O dia abriu seu pára-sol bordado
de nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
minuciosamente desenhado.
Depois surgiu, no céu azul arqueado,
a Lua – a Lua! – em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia.
Passou, ficou a olhá-la admirado.
Pus meus sapatos na janela alta,
sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
pra suportarem a existência rude!
E eles sonham imóveis, deslumbrados,
que são dois velhos barcos, encalhados
sobre a margem tranqüila de um açude.
Quando terminei a leitura, veio a indefectível pergunta: “Onde Quintana se refere ao verão?”. Respondi: “Não o cita explicitamente, mas o deixa implícito”. “Você encontrou só isso?!”, alguém, mais objetivo (ou mais chato?) perguntou. Menti: “claro que não! Encontrei dezenas, só não tive tempo de copiar”. Como não sou bom mentiroso, percebi que não consegui convencer ninguém. Tentando ser mais convincente, li este outro poeminha (o diminutivo refere-se à extensão, claro, não à qualidade), igualmente de Mário Quintana:
Calçada de verão
Quando o tempo está seco,
os sapatos ficam tão contentes
que se põem a cantar.
Desta vez ninguém me questionou sobre onde estava a referência à estação do ano. Estava no próprio título. O questionamento, porém, foi mais objetivo: “Por que só poemas de Quintana?”. Menti de novo: “Por que ele, além de meu conterrâneo, é um dos meus poetas preferidos”. A mentira, óbvio, não estava nas duas justificativas. Quintana, de fato, é meu conterrâneo e é um dos escritores que mais admiro e que me inspiram. Estava no fato de sugerir que não apontei outros nomes só por esse motivo. Na verdade, não os encontrei. Não achei um único poema que falasse de verão e que não fosse do meu ilustre conterrâneo. Devem existir, claro, e muitos. Mas quais? Para não me dar por vencido, tive o descaramento de apresentar aos amigos este outro poema de Mário Quintana – que li no Caderno de Sábado do jornal “Correio da Manhã” de Porto Alegre, publicado em 8 de maio de 1976 e que tive o capricho de copiar – que versa sobre como surge a inspiração:
Os poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo,
como de um alçapão.
Os poemas vêm, os poemas vão,
não têm pouso ou porto,
alimentam-se
um instante em cada par de mãos
e partem.
O que eles te dão
é o inesquecível, o maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
E o poeta não tem razão? Claro que tem. Quanto aos poemas que tratem do verão, prometo, oportunamente, refinar a pesquisa e tão logo encontre poemas sobre o tema (caso tenha êxito, claro) revelá-los aos amigos questionadores e, com certezas, para você também, paciente leitor.
Pedro J. Bondaczuk
A poesia é intemporal (ou atemporal, como queiram), certo? Sempre entendi que fosse. Todavia, minha convicção começa a vacilar a esse respeito. Vejam o caso das quatro estações do ano. Há inúmeros poemas sobre a primavera (principalmente), outono e inverno, que se prestam, a caráter, até para criativas metáforas. E o verão? Sempre achei que fosse, igualmente, assunto recorrente de poetas, notadamente deste nosso “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”. Dia desses, todavia, descobri, surpreso, que não é bem assim.
Tudo começou num encontro informal com um grupinho de amigos, todos escritores (portanto amantes inveterados de literatura) e a maioria poetas. Conversa vai, conversa vem e não tardou que viesse à baila nosso tema predileto, aquele que nos identifica e une. Nem preciso dizer qual é, não é mesmo? Só poderia ser um. E, de fato, era. Literatura, sem dúvida nenhuma. Como um assunto puxa outro, logo alguém observou que o verão (e fazia um calor desgraçado naquele momento) é tema até que raro na poesia. Discordei. E para posar de sabido, citei, de imediato, a magnífica composição de Tom Jobim, “As águas de março”. Fui mais longe, ousei cantarolar os primeiros versos, com meu vozeirão de locutor, superdesafinado, que não se presta nem um pouquinho ao canto.
Choveram protestos. Aliás, foram gerais. A princípio pensei que meus amigos estavam protestando “só” por causa da minha pífia interpretação. Não era. Ou pelo menos, não era “só” por isso. “Calma lá, não estamos nos referindo à MPB, mas à poesia”, alguém esclareceu. “Mas como?!”, perguntei admirado, “vocês não consideram ‘As águas de março’ poesia?!”, exclamei, sem esconder irritação e desapontamento. “Claro que é, mas não é a esse tipo que estamos nos referindo”, alguém respondeu. E outro amigo colocou outra restrição a mais: “Também não vale citar poetas nordestinos que tratem do assunto de seca”.
Tentei lembrar-me de algum poema que tratasse de verão, mas não me veio nenhum à memória. Pedi um tempo e prometi pesquisar a respeito, mesmo com tantos afazeres programados. Daria um jeito. E, de fato, dei. Pesquisei cerca de um milhar de poemas, de uns 300 poetas diferentes e não encontrei quase nenhum que versasse sobre o verão. Claro que se trata de um universo muito pequeno para pesquisa, mas creio que, se o tema fosse muito explorado, eu encontraria uma quantidade maior de composições.
Para não me dar por vencido, no encontro seguinte puxei de cara o assunto. E, de imediato, li este poema de Mário Quintana:
O dia abriu seu pára-sol bordado
O dia abriu seu pára-sol bordado
de nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
minuciosamente desenhado.
Depois surgiu, no céu azul arqueado,
a Lua – a Lua! – em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia.
Passou, ficou a olhá-la admirado.
Pus meus sapatos na janela alta,
sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
pra suportarem a existência rude!
E eles sonham imóveis, deslumbrados,
que são dois velhos barcos, encalhados
sobre a margem tranqüila de um açude.
Quando terminei a leitura, veio a indefectível pergunta: “Onde Quintana se refere ao verão?”. Respondi: “Não o cita explicitamente, mas o deixa implícito”. “Você encontrou só isso?!”, alguém, mais objetivo (ou mais chato?) perguntou. Menti: “claro que não! Encontrei dezenas, só não tive tempo de copiar”. Como não sou bom mentiroso, percebi que não consegui convencer ninguém. Tentando ser mais convincente, li este outro poeminha (o diminutivo refere-se à extensão, claro, não à qualidade), igualmente de Mário Quintana:
Calçada de verão
Quando o tempo está seco,
os sapatos ficam tão contentes
que se põem a cantar.
Desta vez ninguém me questionou sobre onde estava a referência à estação do ano. Estava no próprio título. O questionamento, porém, foi mais objetivo: “Por que só poemas de Quintana?”. Menti de novo: “Por que ele, além de meu conterrâneo, é um dos meus poetas preferidos”. A mentira, óbvio, não estava nas duas justificativas. Quintana, de fato, é meu conterrâneo e é um dos escritores que mais admiro e que me inspiram. Estava no fato de sugerir que não apontei outros nomes só por esse motivo. Na verdade, não os encontrei. Não achei um único poema que falasse de verão e que não fosse do meu ilustre conterrâneo. Devem existir, claro, e muitos. Mas quais? Para não me dar por vencido, tive o descaramento de apresentar aos amigos este outro poema de Mário Quintana – que li no Caderno de Sábado do jornal “Correio da Manhã” de Porto Alegre, publicado em 8 de maio de 1976 e que tive o capricho de copiar – que versa sobre como surge a inspiração:
Os poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo,
como de um alçapão.
Os poemas vêm, os poemas vão,
não têm pouso ou porto,
alimentam-se
um instante em cada par de mãos
e partem.
O que eles te dão
é o inesquecível, o maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
E o poeta não tem razão? Claro que tem. Quanto aos poemas que tratem do verão, prometo, oportunamente, refinar a pesquisa e tão logo encontre poemas sobre o tema (caso tenha êxito, claro) revelá-los aos amigos questionadores e, com certezas, para você também, paciente leitor.
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