O passado, ah o passado!
Pedro J. Bondaczuk
O passado, óbvio, não pode ser alterado para modificar nossos erros de ação, omissão ou de escolha, certo? É verdade que alguns cínicos ditadores tentam (em vão) reescrever a história, numa busca infrutífera de expurgar atos de vilania, crimes, corrupções, traições etc. que cometeram. Mas estes não contam. Sua credibilidade é rigorosamente nenhuma.
Para as pessoas comuns, com vidas também comuns, isso não tem a menor importância. Todavia, caso num golpe de sorte, ou de competência pessoal, elas venham a ser alçadas à condição de celebridades, seu passado irá, com certeza, contar, e muito. Não adiantará tentarem esconder erros e omissões (quando não delitos), reescrevendo biografias. Cedo ou tarde, o que desejariam manter oculto, virá fatalmente à tona e poderá causar sérios danos à sua imagem pública. Foi o que aconteceu recentemente com o escritor alemão Gunter Grass.
Que se trata de um vencedor em sua atividade não resta a menor dúvida. Basta lembrar, entre outras coisas, que ganhou um Prêmio Nobel de Literatura, o de 1999. Sua obra emblemática, conhecida pelos amantes da leitura mundo afora –, transposta para o cinema, onde também teve notório e até mais retumbante êxito do que o romance – é o livro “O tambor”. Há já bom tempo, porém, Gunter Grass vem sendo o foco de apaixonadas polêmicas. Aliás, potencialmente, tudo o que o envolve é polêmico.
O escritor nasceu, por exemplo, na cidade portuária de Gdansk. Deveria, pois, pelos nossos critérios de caracterização de nacionalidade (nossos quero dizer do Brasil) ser considerado polonês e não alemão. Afinal, na época do seu nascimento, a localidade pertencia à Polônia (e pertence ainda hoje, sendo o berço do movimento Solidariedade, liderado por Lech Walesa, que pôs fim ao regime comunista nesse país do Leste Europeu), embora a Alemanha a reivindicasse. Para os alemães até seu nome era germânico. Ou seja, era grafado e pronunciado como Danzig.
Recorde-se que a Segunda Guerra Mundial teve como estopim detonador esse até mítico porto. Tudo começou quando, em 2 de setembro de 1939, as tropas nazistas invadiram a cidade, anexando-a de imediato ao império que Adolf Hitler pretendia erigir a poder das armas e apregoava que duraria mil anos. Durou menos de seis. Gunt6er Grass, a despeito de haver nascido em Gdansk, portanto na Polônia, sempre se considerou alemão e assim ficou. Nunca ninguém discutiu essa sua naturalidade e ninguém, nessa localidade tão disputada, o considerou (e nem o considera) polonês.
Esta, todavia, não é a questão crucial referente ao passado de Gunter Grass. É a sua vinculação ao nazismo, que permaneceu nas sombras por muitos e muitos anos, até que viesse, subitamente, à tona. E a revelação não foi feita por nenhum dos seus desafetos, por qualquer adversário ou mesmo inimigo. Partiu do próprio escritor, em sua magnífica e bem-escrita (o que é redundante ressaltar, por se tratar de um ganhador de Nobel), “Nas peles da cebola” – lançada no Brasil pela Editora Record, com tradução de Marcelo Backes).
O livro causou um enorme alarido, um grande estardalhaço, não só na Alemanha, mas em toda a Europa, nos Estados Unidos e nos círculos literários mais cultos do nosso país. Jerônimo Teixeira intitulou seu comentário (excelente por sinal) acerca desse livro, publicado na revista “Veja”, de “Memórias de um hipócrita”. Há quem diga que, se essa autobiografia fosse lançada antes de Grass conquistar o Nobel, ele não teria ganho jamais esse prêmio. Será? Tenho minhas dúvidas.
A Segunda Guerra Mundial, cujos 66 anos do seu término ocorreu neste mês de agosto de 2011, foi tão terrível, tão devastadora, tão cruel que, mesmo passado tanto tempo, não cicatrizou por completo as chagas que deixou. Já passaram algumas gerações, mas as atrocidades cometidas naquele período nunca foram esquecidas. No aspecto positivo, é bom que não haja caído no esquecimento, para que jamais fatos terríveis, como aqueles, se repitam. Contudo, no sentido de manter vivo o espírito de “vingança”, isso é ruim, muito ruim. É péssimo!
A revelação de Gunter Grass, em “Nas peles da cebola”, chocou os que não sabiam e nem desconfiavam de seu passado nazista, por uma razão particular. Ocorre que o escritor erigiu praticamente toda a sua obra literária com a postura do crítico feroz e constante do nazismo. Foi considerado como porta-voz de uma geração alemã que nasceu sob o signo dessa odiosa ideologia, mas que se considera vítima dela e não seu esteio.
O tema é bastante extenso e proponho-me a abordar, oportunamente, muitos outros dos seus aspectos. Jerônimo Teixeira cita em seu texto o “fulcro” da controvérsia em torno da revelação do laureado romancista alemão (ou polonês?); “Por muito tempo Grass se arvorou no posto de consciência da nação, exigindo a plena exposição do passado nazista”. Ou seja, exigiu dos outros, mas tardou muito em fazer a sua. Fê-lo apenas agora, aos 80 anos, talvez pressentindo a proximidade da morte, sabe-se lá.
Jerônimo Teixeira inicia seu excelente comentário dessa forma: “O historiador alemão Joachim Fest disse que não compraria um carro usado do escritor Gunter Grass. O comentário veio a propósito da revelação, no ano passado (um mês antes da morte de Fest) de que Grass havia servido na Waffen-SS, o braço combatente da tropa de elite nazista que conduziu o genocídio”.
E você, leitor amigo, o que acha de tudo isso? Grass foi hipócrita ao esconder por tantos anos seu passado nazista ou apenas aguardou o momento que julgou oportuno para fazer a revelação? Você compraria um “carro usado” desse escritor ou temeria ser enganado por ele?
Para Jerônimo Teixeira, a autobiografia “Nas peles da cebola” confirma “o veredito de Fest: Grass, como um revendedor de carros picareta treinou sua retórica para disfarçar a desonestidade”. Você concorda? No final das contas, esse caso confirma minha afirmação inicial (óbvia) de que “o passado não pode ser alterado para modificar nossos erros de ação, omissão ou de escolha”. Ou, por acaso, pode?
Pedro J. Bondaczuk
O passado, óbvio, não pode ser alterado para modificar nossos erros de ação, omissão ou de escolha, certo? É verdade que alguns cínicos ditadores tentam (em vão) reescrever a história, numa busca infrutífera de expurgar atos de vilania, crimes, corrupções, traições etc. que cometeram. Mas estes não contam. Sua credibilidade é rigorosamente nenhuma.
Para as pessoas comuns, com vidas também comuns, isso não tem a menor importância. Todavia, caso num golpe de sorte, ou de competência pessoal, elas venham a ser alçadas à condição de celebridades, seu passado irá, com certeza, contar, e muito. Não adiantará tentarem esconder erros e omissões (quando não delitos), reescrevendo biografias. Cedo ou tarde, o que desejariam manter oculto, virá fatalmente à tona e poderá causar sérios danos à sua imagem pública. Foi o que aconteceu recentemente com o escritor alemão Gunter Grass.
Que se trata de um vencedor em sua atividade não resta a menor dúvida. Basta lembrar, entre outras coisas, que ganhou um Prêmio Nobel de Literatura, o de 1999. Sua obra emblemática, conhecida pelos amantes da leitura mundo afora –, transposta para o cinema, onde também teve notório e até mais retumbante êxito do que o romance – é o livro “O tambor”. Há já bom tempo, porém, Gunter Grass vem sendo o foco de apaixonadas polêmicas. Aliás, potencialmente, tudo o que o envolve é polêmico.
O escritor nasceu, por exemplo, na cidade portuária de Gdansk. Deveria, pois, pelos nossos critérios de caracterização de nacionalidade (nossos quero dizer do Brasil) ser considerado polonês e não alemão. Afinal, na época do seu nascimento, a localidade pertencia à Polônia (e pertence ainda hoje, sendo o berço do movimento Solidariedade, liderado por Lech Walesa, que pôs fim ao regime comunista nesse país do Leste Europeu), embora a Alemanha a reivindicasse. Para os alemães até seu nome era germânico. Ou seja, era grafado e pronunciado como Danzig.
Recorde-se que a Segunda Guerra Mundial teve como estopim detonador esse até mítico porto. Tudo começou quando, em 2 de setembro de 1939, as tropas nazistas invadiram a cidade, anexando-a de imediato ao império que Adolf Hitler pretendia erigir a poder das armas e apregoava que duraria mil anos. Durou menos de seis. Gunt6er Grass, a despeito de haver nascido em Gdansk, portanto na Polônia, sempre se considerou alemão e assim ficou. Nunca ninguém discutiu essa sua naturalidade e ninguém, nessa localidade tão disputada, o considerou (e nem o considera) polonês.
Esta, todavia, não é a questão crucial referente ao passado de Gunter Grass. É a sua vinculação ao nazismo, que permaneceu nas sombras por muitos e muitos anos, até que viesse, subitamente, à tona. E a revelação não foi feita por nenhum dos seus desafetos, por qualquer adversário ou mesmo inimigo. Partiu do próprio escritor, em sua magnífica e bem-escrita (o que é redundante ressaltar, por se tratar de um ganhador de Nobel), “Nas peles da cebola” – lançada no Brasil pela Editora Record, com tradução de Marcelo Backes).
O livro causou um enorme alarido, um grande estardalhaço, não só na Alemanha, mas em toda a Europa, nos Estados Unidos e nos círculos literários mais cultos do nosso país. Jerônimo Teixeira intitulou seu comentário (excelente por sinal) acerca desse livro, publicado na revista “Veja”, de “Memórias de um hipócrita”. Há quem diga que, se essa autobiografia fosse lançada antes de Grass conquistar o Nobel, ele não teria ganho jamais esse prêmio. Será? Tenho minhas dúvidas.
A Segunda Guerra Mundial, cujos 66 anos do seu término ocorreu neste mês de agosto de 2011, foi tão terrível, tão devastadora, tão cruel que, mesmo passado tanto tempo, não cicatrizou por completo as chagas que deixou. Já passaram algumas gerações, mas as atrocidades cometidas naquele período nunca foram esquecidas. No aspecto positivo, é bom que não haja caído no esquecimento, para que jamais fatos terríveis, como aqueles, se repitam. Contudo, no sentido de manter vivo o espírito de “vingança”, isso é ruim, muito ruim. É péssimo!
A revelação de Gunter Grass, em “Nas peles da cebola”, chocou os que não sabiam e nem desconfiavam de seu passado nazista, por uma razão particular. Ocorre que o escritor erigiu praticamente toda a sua obra literária com a postura do crítico feroz e constante do nazismo. Foi considerado como porta-voz de uma geração alemã que nasceu sob o signo dessa odiosa ideologia, mas que se considera vítima dela e não seu esteio.
O tema é bastante extenso e proponho-me a abordar, oportunamente, muitos outros dos seus aspectos. Jerônimo Teixeira cita em seu texto o “fulcro” da controvérsia em torno da revelação do laureado romancista alemão (ou polonês?); “Por muito tempo Grass se arvorou no posto de consciência da nação, exigindo a plena exposição do passado nazista”. Ou seja, exigiu dos outros, mas tardou muito em fazer a sua. Fê-lo apenas agora, aos 80 anos, talvez pressentindo a proximidade da morte, sabe-se lá.
Jerônimo Teixeira inicia seu excelente comentário dessa forma: “O historiador alemão Joachim Fest disse que não compraria um carro usado do escritor Gunter Grass. O comentário veio a propósito da revelação, no ano passado (um mês antes da morte de Fest) de que Grass havia servido na Waffen-SS, o braço combatente da tropa de elite nazista que conduziu o genocídio”.
E você, leitor amigo, o que acha de tudo isso? Grass foi hipócrita ao esconder por tantos anos seu passado nazista ou apenas aguardou o momento que julgou oportuno para fazer a revelação? Você compraria um “carro usado” desse escritor ou temeria ser enganado por ele?
Para Jerônimo Teixeira, a autobiografia “Nas peles da cebola” confirma “o veredito de Fest: Grass, como um revendedor de carros picareta treinou sua retórica para disfarçar a desonestidade”. Você concorda? No final das contas, esse caso confirma minha afirmação inicial (óbvia) de que “o passado não pode ser alterado para modificar nossos erros de ação, omissão ou de escolha”. Ou, por acaso, pode?
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