Wednesday, December 21, 2011







Aventura intelectual


Pedro J. Bondaczuk

A leitura dos livros de José Saramago é uma aventura. Não pense você que me lê que se trata de uma crítica a esse originalíssimo escritor que, não por acaso, foi o primeiro (e até aqui o único) de língua portuguesa a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura. É verdade que seus textos, dado seu estilo peculiar, exigem atenção redobrada do leitor para não perder o fio da leitura. Em diálogos, por exemplo, ele não usa travessões e sequer aspas para caracterizar a fala dos personagens. Os parágrafos são longuíssimos e, por isso, tendem a nos distrair.
Mas... a leitura de José Saramago é uma aventura. É uma aventura tanto de caráter estético quanto e, sobretudo, intelectual, pelas idéias que expõe. E pela linguagem, não raro camuflando interminável tom de ironia, de que se utiliza. É um escritor que sai da mesmice reinante, abre mão do óbvio e brinca, o tempo todo (ou pelo menos assim parece), com quem o lê.
Acabo de reler um dos seus romances menos badalados, mas dos mais magníficos, e continuo abobalhado, sem saber de que forma analisá-lo. Refiro-me a “A jangada de pedra”, lançado no Brasil, em fins dos anos 90 do século XX, pela Companhia das Letras. Acompanhei, com a respiração suspensa, a aventura dos seus cinco principais personagens (humanos) – Joana Carda, Joaquim Sassa, Pedro Orce, José Anaiço e Maria Guavaíra – além de três irracionais, dois cavalos e um cão sumamente estranho (que sequer ladrava por não ter cordas vocais) e uma máquina, mais especificamente um automóvel, chamado de Dois Cavalos, por ser esta a potência do seu motor.
A história (seria metafórica?), gira em torno de uma incrível separação da Península Ibérica, constituída por Portugal e pela Espanha, do restante da Europa. No caso, todavia, não foi uma ruptura política, econômica, social e/ou cultural. Foi física mesmo. As montanhas, no caso os Pirineus, racharam-se de alto abaixo, respeitando, rigorosamente, a linha de fronteira. A princípio, foi uma rachadura de centímetros. Posteriormente, esta se alargou, se alastrou, passou a ser de metro, de quilômetros, de milhares de quilômetros e, subitamente, a Península Ibérica começou a deslizar no mar, sem destino, como imensa jangada. Incrível “jangada de pedra” (daí o título do romance).
Todo o enredo gira em redor dos personagens que citei, quatro portugueses e um espanhol (o único que morre ao cabo de toda a aventura). Joana Carda risca o chão com uma vara de negrilho (uma espécie de olmo) e isso fez com que todos os cães de Cerbere, cidade francesa na fronteira da Península Ibérica, começassem a ladrar. E o risco feito no solo, não se apagava de forma alguma. Mesmo revolvida a terra onde havia sido feito, ele se reconstituía como fora feito originalmente, a seguir.
Joaquim Sassa, por seu turno, caminhando por uma praia, arremessou uma pedra relativamente pesada, de uns cinco quilos ou mais, irregular, mas com forma lembrando um disco, contra as ondas. Esta bateu na água, ricocheteou, subiu a altura inusitada e repetiu o ricochete várias vezes, antes de, finalmente, afundar no mar.
O espanhol Pedro Orce, farmacêutico de uma pequena aldeia de seu país, subitamente passou a sentir o solo a tremer sob seus pés, embora não houvesse terremoto algum, ninguém mais sentisse o tremor e os sismógrafos registrassem linhas retas, indicando que a terra permanecia rigorosamente imóvel.
José Anaiço, professor primário, de primeiras letras, subitamente passou a ser seguido, para onde quer que fosse, por crescentes bandos de estorninhos, que apenas vários meses depois de deflagrado o fenômeno, deixaram de segui-lo finalmente.
Maria Guavaira, ao desmanchar meia de lã azul, viu formar-se um novelo interminável. Quanto mais desfazia a peça, mais e mais havia a desfazer. A iniciativa inicial, em busca de explicação para o fenômeno da separação da Península Ibérica do continente europeu, partiu de Joaquim Sassa, proprietário do automóvel chamado o tempo todo de Dois Cavalos. Ele saiu em viagem, um tanto sem rumo, e foi parar na aldeia de José Anaiço, que era seguido, sem nenhuma explicação lógica ou mesmo ilógica, por centenas no início e, posteriormente, por milhares de estorninhos.
Este junta-se ao aventureiro original e ambos vão parar em uma cidadezinha espanhola, onde o sexagenário Pedro Orce sente a terra tremer sob os pés, sem que ninguém mais o sinta. Logo o espanhol junta-se à dupla, que segue viagem à procura de Joana Carda. Encontram-na e, na ocasião, dá-se o encontro com o misterioso cão, que se tornará, a partir de então, personagem praticamente central da trama, com seu misterioso comportamento.
A mulher incorpora-se à estranha caravana em sua viagem sem rumo, em busca de explicações. E aí dá-se o esperado, ou o natural, quando pessoas de sexos diferentes têm relativamente longa convivência. Joana, que havia abandonado o marido antes do episódio do risco no solo com a vara de negrilho, apaixona-se por Joaquim Sassa (e vice-versa) e ambos passam a coabitar maritalmente, mantendo relações sexuais.
Entre idas e vindas, a caravana vai parar na casa da viúva Maria Guavaira. O automóvel, a essa altura, após atravessar Portugal inteiro, boa parte da Espanha, e novamente grandes extensões do território português, finalmente chega ao limite. Sofre avaria, impossível de reparar. O agora quinteto, com o cão a segui-lo, decide ir até o local em que se deu a ruptura, que redundou na separação da Península Ibérica do continente europeu.
Com o carro avariado, os cinco resolvem seguir viagem em um carroção, puxado por um cavalo que pertencia à viúva. E dá-lhe mais aventuras. Maria Guavaira e José Anaiço se apaixonam, formando dois casais. Só o ancião Pedro Orde fica sem mulher. Mas, a dada altura, as duas fêmeas, condoídas da situação aflitiva do espanhol, se oferecem, primeiro uma e depois outra, ao sexagenário. Um dia, ambas percebem que ficaram grávidas. Mas... quem seria o pai? Seriam os respectivos parceiros ou seria Pedro Orce? Essa dúvida, Saramago deixa no ar. Todavia, mais não lhes revelo para não lhes tirar o prazer da descoberta caso se proponham a ler “Jangada de pedra”.
Se porventura você se dispuser a empreender esta aventura estético-intelectual, recomendo que esteja atento ao caminho, para colher flores e mais flores de sabedoria à sua margem, como esta: “Pensando bem, não há um princípio para as coisas e para as pessoas, tudo o que um dia começou tinha começado antes que a história desta folha de papel, tomemos o exemplo mais próximo das mãos, para ser verdadeira e completa, teria de ir remontando até aos princípios do mundo”. Ou como esta: “Se um dia tiveres um filho, ele morrerá porque tu nasceste, desse crime ninguém te absolverá, as mãos que fazem e tecem são as mesmas que desfazem e destecem”. Ou como esta outra: “O homem é um animal inconsolável”. Ou, ainda, como esta: “Este mundo, não nos fatigaremos de dizer, é uma comédia de enganos”. E boa viagem, nesta deliciosa aventura estético-cultural


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