Os fatos são subversivos
Pedro J. Bondaczuk
“Os fatos são subversivos” é o título do livro do jornalista, escritor, conferencista e professor inglês Timothy Garton Ash, que acabo de ler. É constituído por ensaios, na verdade adaptações de artigos publicados na imprensa inglesa e norte-americana e de palestras proferidas nos mais renomados centros culturais, notadamente europeus. É uma aula, lúcida e muito bem fundamentada, de política internacional.
Pedro J. Bondaczuk
“Os fatos são subversivos” é o título do livro do jornalista, escritor, conferencista e professor inglês Timothy Garton Ash, que acabo de ler. É constituído por ensaios, na verdade adaptações de artigos publicados na imprensa inglesa e norte-americana e de palestras proferidas nos mais renomados centros culturais, notadamente europeus. É uma aula, lúcida e muito bem fundamentada, de política internacional.
No final do seu livro, Ash analisa algumas obras e escritores, dos que se destacaram por um certo ativismo político. E como seria de se esperar, faz, também, uma análise, bastante lúcida, da autobiografia do laureado romancista alemão, Gunter Grass, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1999, intitulada “Nas peles da cebola”.
O livro em questão gerou, e vem gerando, intensíssima polêmica, mas não por seu valor literário, pela forma como foi escrito, mas pela revelação bombástica do autor, de que, de fato, serviu na Waffen-SS nazista, durante a Segunda Guerra Mundial, o que nunca negou, mas também jamais admitiu antes. E justo ele, que contestou tanto o passado nazista da Alemanha e apregoou aos quatro ventos que todos os que serviram esse execrável e super-execrado regime deveriam revelar isso e fazer o “meã culpa”! E, a bem da verdade ele fez... posto que tardiamente, com setenta anos de atraso.
O crítico Rafael Dias resume a controvérsia, no texto que publicou na revista “O grito” – edição de 29 de fevereiro de 2008, na versão eletrônica – intitulado “Mea culpa e reparação”, da seguinte forma: “O octogenário Gunter Grass” não cansa de surpreender. Até a seu contragosto, sem uma intenção deliberada (pelo menos aberta), causou um efeito dominó nos brios dos seus algozes e críticos contumazes. Quase cinco décadas após lançar seu clássico ‘O tambor’, o prêmio Nobel de Literatura retorna em grande estilo às prateleiras, ouriçando a todos com revelações lacradas a sete chaves por décadas”.
E como ouriçou! Sofreu autêntico linchamento moral, quer de simpatizantes e admiradores, quer de adversários contumazes e inimigos gratuitos. Rafal Dias enfatiza: “A polê¬mica em torno de Nas Peles da Cebola tomou pro¬por¬ções que nem o pró¬prio autor cogi¬tava, embora sou¬besse que cor¬resse o risco de tocar na ferida do orgu¬lho ale-mão, um tabu e assunto proi¬bido até hoje no país. Dizer que Günter Grass foi ridi¬cu¬la¬ri-zado pelos crí¬ti¬cos por causa disso é pouco. Malhado em praça pública como um judas, o escri¬tor foi alve¬jado por vitu¬pé¬rios de ‘auto¬ri¬tá¬rio’ e ‘men¬ti¬roso’ de forma maciça pela imprensa alemã, den¬tre eles o jor¬nal Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ), que fez as acu¬sa¬ções mais iras¬cí¬veis, assim que o livro de memó¬rias che¬gou às livra¬rias. ‘Quiseram me calar, me dei¬xar mudo”, repe¬tia Grass, em entre¬vis¬tas con¬ce¬di¬das naquela época, agosto de 2006”.
Fica, porém, uma pergunta no ar. Abstraindo a questão da polêmica despertada pela bombástica revelação, o livro tem qualidade literária, compatível com um ganhador de Nobel? Há quem, influenciado pela suposta “desonestidade intelectual” do autor, entenda que não. Mas há, também, quem considere a autobiografia boa, mediana, excelente, ou até mesmo genial.
Timothy Garton Ash escreve a propósito: “Admito, ele foi membro da Waffen-SS. Mas suponhamos que essa revelação não tivesse ofuscado a publicação das memórias de Gunter Grass, como uma nuvem de explosão atômica. O que deveríamos ter dito de ‘Nas peles da cebola’? Creio que deveríamos ter dito que se trata de um livro maravilhoso, um retorno ao território e ao estilo clássico de Grass, depois de longos anos de obras decepcionantes, inexpressivas e, às vezes, insuportavelmente prepotentes e um complemento perfeito para sua grande ‘trilogia de Danzig’ de romances, que começa com ‘O tambor’. É isso que deveríamos dizer, para começar e terminar”.
Ash, todavia, faz, também, restrições ao livro que nada têm a ver com a revelação bombástica que o tornou ridículo aos olhos dos detratores. Entende, por exemplo, que a autobiografia poderia ser mais enxuta, melhor editada, menos enfadonha e repetitiva e não tão extensa. Para ele, “faltou o lápis vermelho” de um editor mais atento e ousado. Faltou mesmo. Isso, todavia, não tira o mérito literário do livro, que é inegável quando avaliado, reitero, com um olhar mais frio, mais isento e mais desapaixonado.
Garton Ash enfatiza: “Ele trabalha e retrabalha a metáfora de descascar a cebola, até desejarmos que o incansável bulbo – exaustivamente ilustrado, em vários estágios de desmantelamento, pelos desenhos do próprio Grass que ilustram o início de cada capítulo – tivesse sido jogado no lixo há muito tempo. E ele usa duas vezes, em contextos bastante triviais, seu tropo sintático mais famoso: ‘Admito’”.
Rafael Dias, por sua vez, destaca os méritos, o lado positivo do livro: “Mas a poeira cinzenta que caiu sobre ‘Nas peles da cebola’ é só uma nódoa pequena diante da riqueza literária desse romance autobiográfico. Compreendida entre o fim de sua infância, que coincide com a eclosão da Grande Guerra em 1939, e o lançamento de seu primeiro romance ‘O tambor’, de 1959, a narrativa contém traços íntimos e teor de humanismo sincero”.
E diz mais: “Grass abre seu baú de memó¬rias con¬tando a sua vida de classe média pobre, filho de comer¬ci¬an¬tes, pas¬sada em Danzig (hoje Gdansk), na costa do mar Báltico. Atribui à mãe a des¬co¬berta da pai¬xão pela arte, o seu mara¬vi¬lha¬mento ao ver pin¬tu¬ras de Caravaggio e Boticelli repro¬du¬zi¬das em maços de cigarro. Não regis¬tra só os momen¬tos ale¬gres, mas tam¬bém expõe sua ‘ver¬go¬nha’ vendo cole¬gas e paren¬tes ‘par¬ti¬rem’. A metá-fora da cebola é per¬feita, nesse pro¬cesso de auto-avaliação: uma a uma, ele des¬pela sua cons¬ci¬ên¬cia doce e amarga, até che¬gar ao centro”.
Mas, analisando o conjunto da autobiografia de Gunter Grass, não se pode deixar de dar razão a Timothy Gartonhj Ash: “os fatos são (mesmo) subversivos”. Pelo menos no caso do laureado romancista alemão eles estão sendo. Um episódio que o hoje atormentado e acossado escritor narra, de passagem, em poucas linhas, como algo corriqueiro e trivial, que poderia passar desapercebido ao leitor menos atento, coloca-o, e à totalidade da sua obra (e, sobretudo toda sua pregação anterior), na berlinda, sob suspeição. É justo? É injusto? As opiniões variam, com tendência maior à condenação. O que irá prevalecer, no final das contas, na biografia definitiva de Gunter Grass? Isso, apenas o tempo irá responder. Ou não...
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Fica, porém, uma pergunta no ar. Abstraindo a questão da polêmica despertada pela bombástica revelação, o livro tem qualidade literária, compatível com um ganhador de Nobel? Há quem, influenciado pela suposta “desonestidade intelectual” do autor, entenda que não. Mas há, também, quem considere a autobiografia boa, mediana, excelente, ou até mesmo genial.
Timothy Garton Ash escreve a propósito: “Admito, ele foi membro da Waffen-SS. Mas suponhamos que essa revelação não tivesse ofuscado a publicação das memórias de Gunter Grass, como uma nuvem de explosão atômica. O que deveríamos ter dito de ‘Nas peles da cebola’? Creio que deveríamos ter dito que se trata de um livro maravilhoso, um retorno ao território e ao estilo clássico de Grass, depois de longos anos de obras decepcionantes, inexpressivas e, às vezes, insuportavelmente prepotentes e um complemento perfeito para sua grande ‘trilogia de Danzig’ de romances, que começa com ‘O tambor’. É isso que deveríamos dizer, para começar e terminar”.
Ash, todavia, faz, também, restrições ao livro que nada têm a ver com a revelação bombástica que o tornou ridículo aos olhos dos detratores. Entende, por exemplo, que a autobiografia poderia ser mais enxuta, melhor editada, menos enfadonha e repetitiva e não tão extensa. Para ele, “faltou o lápis vermelho” de um editor mais atento e ousado. Faltou mesmo. Isso, todavia, não tira o mérito literário do livro, que é inegável quando avaliado, reitero, com um olhar mais frio, mais isento e mais desapaixonado.
Garton Ash enfatiza: “Ele trabalha e retrabalha a metáfora de descascar a cebola, até desejarmos que o incansável bulbo – exaustivamente ilustrado, em vários estágios de desmantelamento, pelos desenhos do próprio Grass que ilustram o início de cada capítulo – tivesse sido jogado no lixo há muito tempo. E ele usa duas vezes, em contextos bastante triviais, seu tropo sintático mais famoso: ‘Admito’”.
Rafael Dias, por sua vez, destaca os méritos, o lado positivo do livro: “Mas a poeira cinzenta que caiu sobre ‘Nas peles da cebola’ é só uma nódoa pequena diante da riqueza literária desse romance autobiográfico. Compreendida entre o fim de sua infância, que coincide com a eclosão da Grande Guerra em 1939, e o lançamento de seu primeiro romance ‘O tambor’, de 1959, a narrativa contém traços íntimos e teor de humanismo sincero”.
E diz mais: “Grass abre seu baú de memó¬rias con¬tando a sua vida de classe média pobre, filho de comer¬ci¬an¬tes, pas¬sada em Danzig (hoje Gdansk), na costa do mar Báltico. Atribui à mãe a des¬co¬berta da pai¬xão pela arte, o seu mara¬vi¬lha¬mento ao ver pin¬tu¬ras de Caravaggio e Boticelli repro¬du¬zi¬das em maços de cigarro. Não regis¬tra só os momen¬tos ale¬gres, mas tam¬bém expõe sua ‘ver¬go¬nha’ vendo cole¬gas e paren¬tes ‘par¬ti¬rem’. A metá-fora da cebola é per¬feita, nesse pro¬cesso de auto-avaliação: uma a uma, ele des¬pela sua cons¬ci¬ên¬cia doce e amarga, até che¬gar ao centro”.
Mas, analisando o conjunto da autobiografia de Gunter Grass, não se pode deixar de dar razão a Timothy Gartonhj Ash: “os fatos são (mesmo) subversivos”. Pelo menos no caso do laureado romancista alemão eles estão sendo. Um episódio que o hoje atormentado e acossado escritor narra, de passagem, em poucas linhas, como algo corriqueiro e trivial, que poderia passar desapercebido ao leitor menos atento, coloca-o, e à totalidade da sua obra (e, sobretudo toda sua pregação anterior), na berlinda, sob suspeição. É justo? É injusto? As opiniões variam, com tendência maior à condenação. O que irá prevalecer, no final das contas, na biografia definitiva de Gunter Grass? Isso, apenas o tempo irá responder. Ou não...
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