Tuesday, June 13, 2006
Saudosa maloca
Pedro J. Bondaczuk
A arte do "jeitinho" do brasileiro – não o lado da burla de normas, regras, regulamentos e leis, mas a capacidade de improvisação – nos possibilita fazer coisas que, em uma ação convencional, jamais conseguiríamos. Exemplo disso são as chamadas repúblicas, casas ou apartamentos alugados coletivamente por estudantes de uma outra cidade, que lhes proporcionam moradia a baixo custo, permitindo custear suas despesas com a universidade. Morei em uma delas, localizada em Barão Geraldo (distrito de Campinas), por muitos anos. Na época, esse era um motivo de constantes queixas, por falta de privacidade e outros inconvenientes menores, que então aborreciam muito. Hoje, essa é a fase da vida que recordo com mais saudades.
É como diz o escritor Jean Rostand (não confundir com o dramaturgo Edmond, autor de "Cyrano de Bergerac"): "O 'amanhã ' é que decidirá se o 'hoje' foi feliz ou infeliz". Trata-se de uma outra versão do que diz a letra de um famoso samba-canção de Ataúlfo Alves, que confessa: "Eu era feliz e não sabia". Não sabia mesmo...
Nossa república, que tinha uma característica diferente por ser de operários vindos de partes diversas do País para trabalhar na Rhodia de Paulínia, foi batizada de Saudosa Maloca. Não que morássemos mal, em alguma tapera. As casas (pois ela começou em uma e foi mudada duas vezes, por uma questão de circunstância e de custo), até que eram confortáveis. Tratou-se de uma homenagem ao famoso sambinha de Adoniran Barbosa, imortalizado pelos Demônios da Garoa.
Apesar de não sermos parentes e sequer conhecidos na ocasião em que nos juntamos, nosso cantinho não se caracterizava pela bagunça. Tínhamos uma organização exemplar e criativa. Por exemplo, "elegíamos", a cada dois anos, um "presidente da república", que tinha o direito a uma reeleição. As funções que permitiam o bom funcionamento da casa eram todas definidas e os que as exerciam eram escolhidos por sorteio. Um era encarregado de arrecadar e pagar o aluguel e todas as contas, como água, luz, impostos, gás, alimentos etc. Outro, tinha a obrigação de fazer o café e as refeições. Outro, ainda, assumia a tarefa de limpeza, e assim por diante.
E não me lembro de uma única ocasião em que alguém deixou de cumprir a incumbência que lhe competia. As controvérsias eram resolvidas por um "conselho", uma espécie de "judiciário", que se reunia uma vez por semana. Havia multas para os que falassem palavrões. O dinheiro ia para a caixinha, que financiava a compra dos gêneros alimentícios da casa. E esta nunca estava vazia. Éramos seis (bom título para um romance). Todos de regiões diversas do Brasil. Havia um gaúcho (eu), um catarinense, um baiano, um carioca e dois mineiros (por sinal, irmãos). Estes últimos eram extraordinárias figuras humanas.
Claro que às vezes a disciplina ia para as cucuias, e a república virava uma bagunça. Nos divertíamos demais com as diferenças culturais dos Estados de que procedíamos. E quem não ficasse esperto, não escapava de alguma brincadeira, às vezes de mau gosto. Esse foi o caso, por exemplo, do dia em que colocamos um cágado, que encontramos perambulando nas redondezas, sob os lençóis da cama do Jarbas. Foi inesquecivelmente hilariante a cara de susto que o bom mineirão fez quando de repente viu, saindo por entre as cobertas, aquela cabeça feia, com pescoço comprido, parecido com uma cobra. Só hoje entendo o quanto de premonição houve no nome que demos à nossa república: Saudosa Maloca...
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