Monday, June 19, 2006

Ligação com Bandeira


*Pedro J. Bondaczuk


A morte do poeta Manuel Bandeira, ocorrida em 13 de outubro de 1968, tem um significado muito especial para mim. E não é apenas pela relevância do escritor ou por sua inegável importância para a literatura brasileira (quiçá mundial, já que, no meu entender, foi um dos injustiçados do Prêmio Nobel), notadamente para a poesia. O que me marcou foi uma circunstância especialíssima, uma incrível coincidência, que me deixa pasmo ainda hoje, passadas quase quatro décadas (quando ela se repetiu) e que me vincula diretamente ao fato. Fiquei sabendo do falecimento do escritor através do rádio e no momento exato (parece mentira ou exagero, mas não é) em que lia o seu poema "Vou me embora pra Pasárgada", na "Antologia dos Poetas Brasileiros", da Editora e Livraria Logos, de São Paulo. Não sei por qual estranha razão, decidi ler esse livro naquele dia, e naquela hora.

Lembro-me que era um domingo. Eu morava, na ocasião, em uma república de estudantes e operários no distrito de Barão Geraldo, em Campinas, na casa que pertencia ao Veraldo Dalben, pessoa muito conhecida e bem relacionada na região. Há pouco, eu havia desistido do curso de medicina, por falta de recursos para custear os estudos, e trabalhava na Rhodia, em Paulínia, multinacional francesa, especializada em produtos químicos. Mas tentava voltar à atividade que de fato me fascinava: o jornalismo. Vivia com a cabeça repleta de sonhos e com os bolsos permanentemente vazios. Por essa ocasião, ensaiava meus primeiros passos no mundo da literatura (ou sub?) – ingênuas poesias de amor, pequenas crônicas e esboços de contos – tendo publicado uma quantidade razoável em jornais das redondezas e na seção literária do Correio Popular (nem me passava pela cabeça que um dia viria a fazer carreira nessa empresa).

Aos domingos, meus companheiros de república costumavam espalhar-se pelo bairro e pela cidade e voltar muito tarde. Uns, iam namorar. Outros, preferiam o cinema. Outros, ainda, freqüentavam estádios e na volta destes paravam em bares, para discutir os lances polêmicos das partidas que haviam assistido ou para comemorar a vitória (ou tentar esquecer a derrota) dos seus respetivos times. Não tínhamos um aparelho de televisão na república. Mesmo se tivéssemos, nosso tempo era muito restrito para ser perdido com esse tipo de diversão.

Nesse dia, eu estava sozinho em casa. Ouvia, por volta das 19 horas, a narração, no rádio, de uma partida de futebol (não me lembro os times que jogavam), no Rio de Janeiro, pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa, "embrião" do atual Campeonato Brasileiro. Como o jogo estava chato (ou era a narração monótona e cheia de lugares comuns?), entediado, peguei a antologia e comecei a percorrer suas páginas, detendo-me aqui e ali, para "saborear" os melhores versos, meio que ao acaso. Topei com o "Vou me embora pra Pasárgada", que já havia lido algumas vezes, sem atentar muito para o seu significado, embora apreciando sua musicalidade. Subitamente, o locutor anunciou: "Acabamos de receber uma triste notícia do nosso Departamento de Jornalismo. Morreu o poeta Manuel Bandeira".

Foi um choque para mim. Não que eu tivesse qualquer ligação pessoal com o escritor. Quem sou eu?! Nunca tive o privilégio de sequer vê-lo de perto. Não tinha contato nem mesmo com os intelectuais mais conhecidos da cidade! Imaginem com alguém tão famoso, e que morava no Rio! O que me intrigou foi a coincidência. Foi como se o destino, de alguma forma, mesmo que de "viés", de maneira tão sutil e casual, quisesse nos aproximar, no derradeiro momento de vida do poeta. E será que não quis? Como posso saber? De qualquer forma, não é todo dia que coincidências como essas acontecem.

Tão logo ouvi a notícia da morte, num impulso, escrevi o seguinte, no espaço em branco da antologia, logo acima do resumo biográfico de Bandeira: "Faleceu o nobre pastor de metáforas, em 13 de outubro de 1968. A saudade que nos deixou e a magnitude da sua perda são impossíveis de se expressar com palavras, nesta página, tamanhas elas são. Dorme em paz, poeta!". Tenho ainda esta antologia, com esse texto escrito a mão, (ao sabor puramente da emoção do momento), para comprovar a veracidade do fato.

Em 13 de outubro do ano passado aconteceu outra coincidência, envolvendo o mesmo Bandeira. Estava lendo seu poema "Irene no céu", quando um amigo ligou-me, para lembrar que era o 37º aniversário da morte do poeta. A princípio, não acreditei. Comprovado o fato, fiquei de novo estarrecido. Foi demais para mim! Uma vez, vá lá, mas duas! E por que eu? Resolvi registrar para a posteridade esse estranho mistério, esta nossa especial "ligação", nesta despretensiosa crônica. Antes de escrevê-la, atentei bem para os versos que estava lendo, do poeta pernambucano: "Irene preta/Irene boa/Irene sempre/de bom-humor.//Imagino Irene/entrando no céu:/ --- 'Licença, meu branco?' ---/E São Pedro, brincalhão:/ ---'Entre, Irene./Você não precisa/pedir licença".

Visualizo essa cena e troco os personagens. Retrocedo àquele domingo, de quase trinta e oito anos atrás, e imagino o poeta chegando ao vestíbulo do céu, à espera da ordem para entrar (ou, o que é improvável, dada a vida que levou, do aviso de que seu lugar não era ali). "Licença, meu santo", diria Bandeira, todo sorridente, achando que havia chegado a Pasárgada, onde era "amigo do rei". "Entre, poeta, você não precisa pedir licença", provavelmente deve ter lhe respondido São Pedro. E ele entrou, para gozar as delícias do céu, ao lado de Machado de Assis, Cecília Meirelles, Monteiro Lobato, Mário de Andrade e uma plêiade de outros grandes escritores, que nos deixaram órfãos, cá na Terra...

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