Tuesday, June 06, 2006
Emoção e talento para "reinventar a vida" - V
Pedro J. Bondaczuk
(Continuação)
Morte precoce interrompe a fama
Um dos mais refinados poetas já nascidos no Estado de São Paulo, Benedito Luís Rodrigues de Abreu, não obteve o reconhecimento compatível com o seu talento. Provavelmente isto se deveu à sua morte precoce, aos 30 anos de idade, vítima da tuberculose. Sua notoriedade restringe-se, praticamente, à sua cidade natal, Capivari, onde nasceu em 27 de setembro de 1897. É um desconhecido tanto em São Paulo, onde trabalhou algum tempo, principalmente na célebre revista “A Cigarra”, quanto em Bauru, onde viveu por vários anos e onde morreu, em 24 de novembro de 1927. Fez seus estudos em Piracicaba, onde desenvolveu intensa atividade literária. Contudo, poucos piracicabanos conhecem, hoje em dia, a sua relativamente escassa, porém valiosa, obra poética.
Em Capivari, Rodrigues de Abreu se destacou tanto como intelectual, quanto como atleta, já que foi centroavante do tradicional Capivariano Futebol Clube, do qual, inclusive, compôs o hino oficial. Descobriu que estava com tuberculose aos 27 anos, em 1924. Na época, a doença era de difícil cura. Esteve internado por algum tempo num sanatório de Campos de Jordão e julgou estar curado, mudando-se para Bauru. Tempos depois, todavia, sofreu recaída, o que acabou determinando sua morte precoce.
O primeiro livro escrito por Rodrigues de Abreu foi “Folhas”, que não foi, porém, o primeiro a ser publicado, em decorrência de não contar, na época, com recursos financeiros para bancar a edição. Mas tratava-se de uma obra de tão alta qualidade, que levou o jornalista e escritor Amadeu Amaral a afirmar, entusiasmado: “Depois de Olavo Bilac e Martins Fontes, este é o melhor livro de estréia que tenho visto”. O primeiro a ser publicado, porém, foi “Noturnos”.
Tenho em mãos a 4ª edição de “Casa Destelhada”, lançada em 1986 pela Gráfica e Editora do Lar/ABC do Interior. Não foi somente Amadeu Amaral que ficou impressionado com o talento do poeta de Capivari. Sua poesia recebeu rasgados elogios de intelectuais do calibre de Menotti Del Pichia, Jamil Almansur Hadad e Domingos Carvalho da Silva, entre outros. Daí estranhar-se o fato de ser tão pouco divulgado e de estar virtualmente esquecido até nos mais esclarecidos círculos poéticos. Além de “Noturnos”, “Folhas” e “Casa Destelhada”, um quarto livro de Rodrigues de Abreu foi lançado, pouco antes da sua morte: “A sala dos passos perdidos”.
Sua temática, salvo exceções, foi a mística, da qual engendrou preciosas pepitas dos mais nobres e elevados sentimentos. No poema “Inscrição”, ele aborda e define a sua poesia, com modéstia, mas com imensa beleza:
“A minha poesia é como uma poça de água humilde,
escondida num bosque, no meio de um campo desolado.
Caminheiro! Se tiveres sede e cansaço,
suspenda a tua viagem, entra no bosque humilde
e bebe quanto quiseres da água que Deus aí ocultou.
Bebe, descansa um momento, e segue esquecido,
sem necessidade de agradecimento...
Acharás, quase sempre, a água turvada da minha tristeza.
Mas ficarei contente se não disseres: Poça ruim...
Pois se te oferto assim a minha água, amigo cansado,
é porque são numerosos os dias de chuva e de água barrenta
que Deus fez cair neste bosque apartado”.
Um dos poemas mais comoventes e belos de Rodrigues de Abreu foi escrito com forma e ritmo de prosa. Aliás, a esse respeito, Paulo Mendes Campos observou, certa feita, na coluna que assinou por muitos anos na revista “Manchete”: “O poeta quando tem alguma coisa a dizer, escreve prosa; o prosador quando nada tem a dizer, escreve poesia”. E Rodrigues de Abreu tinha, e muito, a transmitir. E o faria, com certeza, profusamente, se a morte não abreviasse a sua trajetória entre nós. O poema a que me refiro é “Estrada iluminada”, confira:
“Na manhã de domingo
pela estrada iluminada,
passa uma menina loura.
Tão loura, tão iluminada
que o sol, ao bater em sua frente,
fica a fulgir, como a moeda de ouro puro
fulge aos olhos cobiçosos de um mendigo.
Vem alegre, puxando o seu burrinho manso...
--- Para onde vai você, menina loura?
--- Meu senhor, vou vender couves lá no mercado...
--- Olhe, eu quero comprar as suas couves:
dê-me dois maços, menina loura,
por esta moeda de prata –
E ela fica a sorrir, enleada e encantada,
ao receber assim tanto dinheiro.
Olha a ponta dos pés que estão descalços
e põe-se a sorrir para mim, tão contente,
que uma lágrima abençoada
baila em meus olhos tristes.
E sem jeito, ela sai, sem despedir-se,
puxando o seu burrinho manso.
Fico a olhá-la, feliz, curvando-me da grade.
Como é linda a menina loura!
Ela não tem receio algum dos pobres tísicos,
pois sabe que os pobres tísicos
é que dão vida a esta vila sombria.
Ainda de longe ela volta a cabeça e me espia.
Faz o gesto do adeus esquecido ainda há pouco...
Linda menina loura!
Moeda doirada de saúde,
fulgindo ao meu olhar cobiçoso de doente!
E entro no meu quarto, apertando contra o peito
os dois maços inúteis de couve,
como se fossem duas rosas encantadas.
No soneto “Ao luar”, fica mais nítida ainda a temática mística de Rodrigues de Abreu, que permeia toda a sua obra. Confira:
Os santos óleos, do alto, o luar derrama.
Eu, pecador, ao claro luar ungido,
sonho: e sonhando rezo comovido
e arrebatado na divina chama.
Deus piedoso, consolo do oprimido,
se compadece, à voz que ardente clama,
porque meu coração, impura lama,
é um brado intenso para os céus erguido!
E o divino perdão desce da altura:
grandes lírios alvíssimos florescem
sob a lua, floresce a formosura...
E nessa florescência, imaculados
raios longos do luar piedoso descem,
choram comigo sobre os meus pecados.
A poesia de Rodrigues de Abreu, como se vê, brota espontânea, natural, sem ser forçada, ou burilada ou talhada. Já nasce pronta, perfeita, acabada. Daí ser tão convincente e bela. Poemas escritos de maneira artificiosa, embora aparentem perfeição, na verdade são disformes. Podem, até, soar bem, contudo não convencem. Não conseguem esconder, a uma pessoa sensível e afeita à poesia, e que não se limite à mera leitura, mas “sinta” cada palavra, seu caráter falso, esquivo, insincero e, por isso, venal.
Mário Quintana definiu com muita felicidade o descomprometimento do poeta quanto ao tema que desenvolve. O assunto, para os que estão familiarizados ao gênero, não é escolhido por eles, mas se impõe, de acordo com o que estejam sentindo no momento em que compõem. É o que se convencionou chamar de “inspiração”. Quintana observou: “Às vezes, a gente pensa que está dizendo bobagens e está fazendo poesia”. O essencial é a autenticidade, a captação de um momento aparentemente banal (mas na verdade muito especial) a emoção viva, a impressão eternizada pelo instrumento da palavra, expressão maior e mais refinada de inteligência.
(Continua)
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