Pedro J. Bondaczuk
A obra literária de Edgar Allan Poe é, sem contestação, da mais alta qualidade. Foi um escritor que fez escola. Passados mais de 160 anos da sua morte (ocorrida em 1849), tudo o que escreveu é estudado atentamente pelos entendidos e, sobretudo, pelos amantes do que há de melhor na Literatura mundial. O que me espanta é como um indivíduo com vida tão irregular conseguia se concentrar para criar as maravilhas que criou. E em abundância. Cataloguei por volta de 80 livros dele, entre os publicados em vida e os póstumos, abrangendo poesia, contos e crítica literária, da qual foi arguto cultor. Recorde-se que Edgar Allan Poe viveu apenas 40 anos.
Fica a pergunta: se vivesse o tanto que vários escritores de hoje vivem, no mínimo o dobro da idade com que se foi, teria produzido mais, e melhor? Essa é uma questão que jamais poderá ser respondida, mas apenas especulada. Pode ser que sim (e essa é minha intuição) e pode ser que não. Não são raros os escritores que esgotam num par de anos – em geral, duas décadas ou menos – seu potencial criativo e, findo esse prazo, não conseguem produzir mais coisa alguma. Em contrapartida, outros seguem sendo originais e criativos, produzindo textos cada vez melhores até o derradeiro suspiro. Há os que começam a escrever tarde, depois dos 60 e revelam uma lucidez mental de fazer inveja a muito garotão de 25, 30 ou 35 anos. Cada caso, pois, é um caso.
Levando em conta a vida desregrada, turbulenta, dramática e irresponsável que Edgar Allan Poe levou, é espantoso o fato de haver produzido uma obra tão vasta, densa, original e, acima de tudo (reitero) de inquestionável (diria, inigualável) qualidade, dessas que permanecem geração após geração, enquanto houver uma única pessoa que goste de ler e tenha supremo bom gosto. Quanto mais leio suas biografias – e as respectivas anotações pontuais que faço de cada uma delas – mais cresce o meu respeito por este gênio atormentado que, no entanto, não permitiu que seus demônios interiores interferissem em sua literatura e nem comprometessem sua suprema qualidade. Minhas reverências, pois, a esse pioneiro.
Se é fato que a juventude do escritor foi marcada por conflitos, bebedeiras, desregramentos e rebeldia, sua maturidade (se é que chegou a amadurecer, levando em conta que morreu com apenas 40 anos) não foi muito diferente. Após romper relações com seu pai adotivo, por causa de sua expulsão da Academia Militar de West Point, Edgar mudou-se para Baltimore, para a casa de sua tia, que era viúva, Maria Clemm. Ali conheceu uma pessoa, pela qual se apaixonou perdidamente e que teve influência decisiva em sua vida. Foi pela prima Virgínia Clemm.
Até aí, nada demais. É a coisa mais normal do mundo um homem apaixonar-se por uma mulher e os dois casarem-se, caso sejam solteiros. Ocorre que sua amada tinha menos da metade de sua idade, ou seja, 13 anos somente. Qualquer pessoa normal, da sua faixa etária (estava com 27 anos na ocasião) , teria escolhido uma moça de idade aproximada da sua para se relacionar. Mas o amor... ah, o amor!, é cheio de surpresas e armadilhas. Ninguém se apaixona porque quer, mas porque a paixão acontece, quando e onde menos se espera e sem escolher condições ideais. Não leva em conta idade, condição social e não raro sequer aparência. Acontece porque acontece.
Além de ser ainda simples menininha, que brincava, quem sabe, com bonecas, havia outro complicador para inviabilizar essa relação: Virgínia era doente, muito doente, praticamente inválida, vítima de uma tuberculose em estágio avançado e desenganada pelos médicos. Ah, o amor e suas armadilhas! O casal não deu a mínima importância às críticas e condenações àquele romance. Após um namoro de quatro ou cinco meses, os dois se casaram. Edgar dedicou extremado amor a Virgínia enquanto ela viveu. Mas não largou da bebida. Pelo contrário, continuou a se embriagar, a ponto de perder a consciência. Suas bebedeiras obrigavam a esposa doente a perambular, vezes sem conta, por bares e tavernas da cidade à sua procura.
As deficiências de ambos, em vez de separá-los, aproximava-os mais e mais: ela, com sua doença incurável, que a incapacitava para as tarefas mais simples do cotidiano e ele, por sua vez, viciado em álcool. Havia cumplicidade entre ambos. Por estranho que pareça, considero esse relacionamento o poema mais belo que Edgar compôs, mesmo que não o escrevendo, mas vivendo. Em meio ao sofrimento, o amor irrestrito do escritor por Virgínia, e vice-versa, fez desse período da sua vida o mais prolífico e produtivo. Ele se sustentou, e manteve a mulher doente, nesta época, com a venda de seus contos para jornais e revistas. E nunca faltaram interessados. Pudera! Sua produção era inovadora, perfeita, bem acabada, coisa de gênio.
Pena que esse casamento durou tão pouco, apenas doze anos. A despeito de todo o esforço de Edgar para salvar a esposa, contratando os mais renomados (e caros) médicos do país para tratá-la, Virgínia não resistiu à doença. Morreu em 1847. Sua morte significou, também, a de Edgar. Psicologicamente ele se acabou. E emocionalmente nem se fala. Pode-se dizer que ele “morreu” de fato, junto com a mulher. O abalo pela perda de Virgínia, à qual amou com tanto desvelo e paixão, fez com que o escritor desmoronasse, abrisse mão dos seus sonhos, mergulhasse, de vez, no álcool e nas drogas.
Naufragou na bebida, numa tentativa de atenuar uma dor insuportável, que só quem já perdeu alguém sumamente amado sabe como é terrível. Tentava, sobretudo, apagar da mente as visões que o atormentavam desde a infância e que só podemos, e remotamente, imaginar. Entrou, dessa forma, em um processo autodestrutivo, que viria, menos de dois anos depois, a causar a sua morte física. Psicologicamente já estava morto.
Mas é desse período terrível uma das obras-primas da poesia norte-americana (e universal), o maravilhoso e pungente poema “The raven” (“O corvo”). Provavelmente a Lenora, mencionada seguidamente nos versos desse expressivo texto, seja a sua inesquecível Virgínia.
Edgar Allan Poe, de acordo com o seu principal biógrafo, Harry Allan, não precisava de grandes quantidades de álcool para se embriagar. Bastava, às vezes, um único gole para que perdesse a consciência. Ele relata: “O efeito do álcool em Poe, até mesmo em pequena quantidade, era incrivelmente desproporcional. Ele parecia ter um organismo tão sensível, que um simples trago era suficiente para fazer com que seus atos e conversa ficassem fora do normal. Um copo era, literalmente, demais; dois ou três tinham um efeito desastroso; vários copos seguidos reduziam-no a uma caricatura de si mesmo”.
A obra de Edgar Allan Poe provoca-me, como amante incondicional da boa literatura, respeito e reverência. Mas as circunstâncias do seu cotidiano, os dramas, trapalhadas e tragédias que o cercaram desde a tenra infância, causam-me um misto de profunda compaixão e de compreensiva e até compulsiva simpatia. Porquanto, a vida me ensinou que somos admirados pelo nosso talento e nossas virtudes, mas somos amados, salvo exceções, por nossas fraquezas e vulnerabilidades, ou seja, por nossa frágil e efêmera condição humana.
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