Sunday, November 11, 2012

Acima de tudo humana

Pedro J. Bondaczuk

A difícil, na maioria das vezes frustrante, mas, sobretudo, fascinante arte de escrever, de penetrar nos segredos da alma e desvendar os sentimentos mais secretos das pessoas, perdeu, há quase 25 anos (que serão completados em 18 de dezembro), uma de suas mais brilhantes e criativas representantes. Refiro-me a Marguerite Cleenewerck Crayencour, que desde 1947 passou a assinar Yourcenar (anagrama de seu sobrenome), por um capricho que somente ela seria capaz de explicar, e que morreu vítima de hemorragia cerebral, em um hospital de Bar Harbor, no Estado norte-americano do Maine, onde vivia.

A escritora, dotada de cultura singular, considerada entre os três melhores autores de língua francesa dos últimos tempos – ao lado de Jean-Paul Sartre e Louis Aragon – a despeito de todas (e merecidas) honrarias que lhe foram tributadas na ocasião, deixou de receber uma, a que fez jus plenamente: o Prêmio Nobel de Literatura. Inscreveu-se, portanto, no vasto rol dos inúmeros injustiçados dessa premiação.

Tudo em Marguerite foi pitoresco. Por exemplo, o fato de ter três nacionalidades no correr de sua existência: a belga (nasceu na Bélgica), a francesa (que adotou e readotou em 1981, depois de abrir mão dela) e a norte-americana. Com isso, viveu algo simbólico, no meu entender. Mostrou que a verdadeira pátria do escritor – esse arqueólogo dos sentimentos, esse eco vivo das emoções – não é aqui, ali ou alhures.

Não é um país “x”, “y” ou “z” específico. É mais amplo, eclético e definitivo. É o universo, com sua infinita imensidão. É o sentimento do homem, essa esfinge, esse mistério, esse desconhecido, ao qual intenta desbravar e revelar. É a própria condição da sua humanidade.

O fato de, sendo mulher, ter conseguido transpor as barreiras do preconceito e chegado à ultra-machista Academia de Letras da França (em 22 de janeiro de 1981, aos 77 anos de idade, cuja eleição foi cercada de intensos debates e muita polêmica), mostrou, acima de tudo, que o talento e a sensibilidade não são prerrogativas do sexo masculino (e nem do feminino, claro). A inteligência e a capacidade de criar são assexuadas. Entre os seus livros, destacam-se: “Memórias de Adriano”, “Alexis”, “Cenário de Sonho” e “A Obra em Negro”.

Há inúmeros outros aspectos na vida dessa escritora, que poderiam ser enfatizados, mas que a limitação de espaço me impede de abordar. Em sua obra, por exemplo, essa mestra exemplar e criativa buscou mostrar, entre tantas outras coisas, que o tempo é indivisível. Que passado, presente e futuro fundem-se numas coisa só, contínua e inseparável.

Marguerite Yourcenar empreendeu, através dos seus livros – cuja virtude maior foi a aliança entre a precisão clássica e a leveza contemporânea – à feição de um Marcel Proust de saias, o “recherche du temp perdu” contemporâneo. Ou seja, tomou um determinado período passado, como matéria-prima, e o recriou como se fosse o presente, vivo, dinâmico, vibrante, repleto de desafios para que os audazes, os empreendedores e os que não temem esta maravilhosa (e perigosa) aventura, que é a vida, aceitem esse repto.

Foi verdadeira iconoclasta em relação aos costumes e tradições, disposta a não se submeter à ignorância e ao preconceito. Para escândalo dos detratores, jamais se casou. Em entrevista publicada em 1981, Marguerite resumiu a incompreensão que cercou seus atos, ao revelar: “Vivo no Maine, e por isso as pessoas dizem que sou reclusa, embora tenha muitos amigos. Porque escrevi sobre o amor não correspondido de Maria Madalena por Cristo (num livro de poesias de 1936, intitulado “Fires”), as pessoas me consideraram sacrílega. E porque vivi com uma mulher (a norte-americana Grace Frick) durante 40 anos, presumem que eu seja lésbica".

Marguerite foi desses seres humanos (infelizmente raros) classificados de “gênios”. Exagero? Não! Exagerado seria não classificá-la como tal. E sua genialidade manifestou-se de forma precoce, como via de regra ocorre com essas pessoas iluminadas e, sobretudo, luminosas. Para provar que não estou me deixando levar apenas pelo entusiasmo por sua literatura corajosa e formalmente exemplar, menciono um fato esclarecedor a propósito.

Cito que, aos oito anos de idade – quando a imensa maioria das meninas ainda brinca com bonecas e quetais (nada contra) – Marguerite já lia (e emitia opiniões pertinentes) a obra de Jean Racine, incompreensível, por sua complexidade e profundidade, para muito marmanjo arrogante, tido e havido como intelectual, com renome e grande quantidade de títulos acadêmicos. que freqüenta academias de letras e outros tantos centros culturais. E mais, nessa mesma idade, aprendeu latim com o seu pai. Aos doze anos, foi ainda mais longe, e tomou lições de grego antigo, idioma que dominou como poucos.

Admiro a genialidade. Sou fascinado pelos gênios. E Marguerite o foi. O que me admira é o fato dela ser tão pouco citada nos meios culturais, especificamente nos literários. Seria preconceito ou desconhecimento? Ou ambos? O primeiro livro que ela publicou, em 1921, foi “O jardim das quimeras”. A ele seguiram-se outros quinze, entre romances, contos, poesias, ensaios e memórias. Vale a pena conhecer sua obra e deliciar-se com ela, por ser um “lauto banquete intelectual” para as mais refinadas mentes.

Irreverente, solitária, batalhadora, sensível, mas, sobretudo, competente. Esta foi a Marguerite Yourcenar (nascida em Bruxelas, em 8 de junho de 1903, de pai francês e mãe belga e que morreu em 18 de dezembro de 1987, no Maine, EUA) que o tempo – que a tudo devora, em sua fome cronológica – abateu, aos 84 anos de idade, ao cabo de uma vida produtiva e exemplar.

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