Pedro J. Bondaczuk
Os encontros de intelectuais, para debater idéias, livros, conceitos (literários ou não) e outros tantos temas referentes à cultura em sentido amplo, estão se tornando coisas cada vez mais raras. Atribui-se isso à “complexidade da vida moderna”. Outros levantam a hipótese das amizades, hoje em dia, não serem tão irrestritas e incondicionais e fieis, como em outros tempos. Outros, ainda, sempre que levanto o assunto, apontam causas diferentes, algumas plausíveis e outras não, como o medo da violência urbana, como as dificuldades crescentes de locomoção nas cidades grandes, cada vez mais abarrotadas de automóveis e, principalmente, o drama para se estacionar o carro sem ter que se haver com os tais “flanelinhas” e vai por aí afora.
Há, é certo, promoções de centros culturais, cada vez menos freqüentadas, como palestras, simpósios, conferências etc. Nesse caso, falta um ingrediente que considero essencial para tornar essas reuniões atrativas: a informalidade. Poucos se dispõem a receber em suas casas amigos escritores, para trocar idéias sobre temas de interesse comum. Ademais, quando esses encontros acontecem, são casuais, não programados, raríssimos por sinal. As trocas de idéias, hoje (e isso quando acontecem), salvo exceções, se dão de forma “neutra”, virtual, diria que impessoal por faltar aquele olho no olho entre amigos que se prezam e nutrem os mesmos interesses. Dão-se, preferencialmente, pelas redes sociais.
Não sou dos que se opõem a esses meios cada vez mais populares de comunicação e nem crítico das novas tecnologias. Bem utilizadas, elas constituem-se em “presentes do céu”. Mas entendo que esse recurso deva ser complementar. Uma coisa não exclui a outra. Nada como um contato pessoal, íntimo, informal, em que os presentes possam expressar o que pensam sem censuras (e até sem autocensuras), com espontaneidade, com verdade e, por que não, com paixão.
Morro de inveja – mas não da rancorosa e destrutiva, porém da que é uma homenagem e expressão de admiração pelo invejado – quando leio a propósito do que foi batizado de “Sabadoyle”. “O que vem a ser isso?”, você deve estar se perguntando, intrigado, associando a expressão ao escritor inglês criador dos personagens Sherlock Holmes e Doutor Watson, Arthur Conan Doyle. Se estiver pensando isso, esqueça. Não tem nada a ver uma coisa com a outra.
“Sabadoyle era o nome da reunião, realizada aos sábados (como a própria denominação sugere), na casa de um cidadão chamado Plínio Doyle”, no Rio de Janeiro. O apelido (se assim posso dizer) desses encontros, que a despeito de serem “sagrados” em todos os finais de semana, eram rigorosamente informais e aos quais comparecia quem pudesse ou quisesse – claro, restrito aos integrantes daquele círculo de amigos – foi dado pelo escritor Raul Bopp.
A criatividade desse grupo era tamanha, que até atas desses encontros eram lavradas e ficavam a cargo do escritor Alphonsus de Guimaraens Junior. Quem dá essas explicações é a filha de Plínio, Sonia Doyle, que ainda criança, testemunhou essas reuniões que, posto que informais (e insisto neste ponto), eram autêntica sucursal da Academia Brasileira de Letras. Dos participantes, quem não era acadêmico, aspirava a alguma cadeira e, mesmo que não aspirasse, bem que a mereceria.
As reuniões, iniciadas nos idos de 1964, eram realizadas, conforme Sonia informou, por oito anos consecutivos (até 1972), no escritório de Plínio, na sua casa localizada na Rua Barão de Jaguaripe, 62. A duração desses encontros, sempre aos sábados (daí, repito, a feliz denominação de “Sabadoyle”), não tinha hora para começar e nem acabar. Via de regra, começavam entre as duas ou três horas da tarde e se estendiam até às sete ou oito horas da noite. Não raro esse tempo era excedido, quando algum assunto mais polêmico produzia acalorados debates. Quase todos os temas eram permitidos, menos dois, que se constituíam em tabus: política e religião. Pudera!
Que bênção seria para um amante da arte e da cultura, e notadamente de literatura (que no meu caso deriva para a paixão), se pudesse participar desses bate papos. Fico imaginando como seria debater, ou trocar idéias, ou limitar-me a colher opiniões (o mais provável) de figuras hoje lendárias nas letras, como Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Raul Bopp, Peregrino Junior, Joaquim Inojosa, Severo da Costa e Homero Homem. Ou como Mário da Silva Brito, Raul Lima, Álvaro Cotrim (o Álvarus), Alphonsus de Guimaraens Filho e Maximiniano de Carvalho e Silva. Ou como os que marcavam presença sem a periodicidade dos sábados, mas que compareciam de vez em quando e que por isso eram alcunhados de “bissextos”, como Wilson Martins, Maria José de Queirós, Josué Montello, José Américo de Almeida, Antonio Tabuchi, Maria José Lancastre, José Mindlin, Bernardo Elis e o ex-ministro Marcílio Marques Moreira, entre tantos e tantos outros.
Eu informei que as reuniões, até 1972, se realizavam na casa da Rua Barão de Jaguaripe. Pode parecer ao leitor que neste ano o grupo se desfez. Engano. O “Sabadoyle” durou mais, muito mais, durou até o Natal de 1998. Muitos integrantes do círculo de amigos, como seria de se esperar, morreram, nesse ínterim, e abriram, sem dúvida, vazios impossíveis de se preencher. De 1972 em diante, os encontros passaram a ocorrer no novo apartamento comprado por Plínio Doyle, mas localizado na mesma rua, só que no número 74.
Atrações a parte eram as atas, lavradas pelo poeta Alphonsus de Guimaraens Junior, mas não no tom formal desse tipo de documento, contudo na linguagem dos “anjos” dos escritores. Esse hábito começou em 11 de novembro de 1972 e nunca mais foi abandonado. Essas atas dariam um livro interessante e dos mais expressivos. Na de número um, Alphonsus arrematou a descrição detalhada do encontro com esta exortação: “Livro, livro, vá em frente/e a todos reúna e valha”. E como reunia! E como valia! Sonia Doyle cita outra ata, a do Natal de 1973, que diz, em certo trecho:
(...) O Natal ilumina. Uma criança
Volta a nascer. Com ela renascemos.
Uma simples criança. Uma esperança
uma grande esperança. É quando ardemos
em puro encantamento, e em nós descansa
o menino que fomos, ou seremos (...).
O “Sabadoyle”, apesar da sua informalidade (ou principalmente por ela), é um capítulo memorável da História da Literatura Brasileira, pouco lembrado e, quando citado em livros, o é apenas, de passagem. Será que algum dia teremos, em algum lugar, outras reuniões de amigos tão ilustres e tão fiéis, que se encontrem todas as semanas e por tanto tempo? Afinal, 34 anos não são 34 dias, não é mesmo? Duvido que isso aconteça. Mas... nunca se sabe.
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