Wednesday, November 07, 2012

Arautos da alegria

Pedro J. Bondaczuk

A chamada música erudita, ou clássica como a maioria costuma caracterizá-la, sempre me causou fascínio e por todas as razões que se possa imaginar. Embora não seja (infelizmente) popular, porquanto exige, além de hábito, certo conhecimento musical específico dos ouvintes (para não dizer bom gosto), não perde nunca a atualidade. Há peças compostas há duzentos, trezentos ou quatrocentos anos e que sobreviveram ao tempo e ao esquecimento, encantando e embalando gerações. Qual o compositor popular contemporâneo consegue essa façanha? Aliás, estes sofrem influência marcante em sua produção dos gênios do passado, sem que, não raro, sequer se dêem conta.

Johann Sebastian Bach, por exemplo, influenciou bastante a Bossa Nova. Ouvi (e fiz) inúmeras entrevistas com compositores desse movimento musical brasileiro de fins dos anos 50 e início dos 60 do século XX, e estes confessaram terem sido influenciados pelo erudito mestre alemão. Até aí, nada de mais. Ocorre que esse gênio morreu em 28 de julho de 1750! Ainda assim influenciou e segue influenciando músicos e compositores das mais diversas tendências e lugares. Há, inclusive, uma composição de Bossa Nova (cujo título e autor não me ocorrem no momento), homenageando, explícitamente, Bach.

O “poetinha” (no sentido carinhoso, claro) Vinícius de Moraes, compôs uma letra para “Jesus a alegria dos desejos humanos”, do sublime compositor alemão, que foi adaptada para o ritmo de marcha-rancho, intitulada “Rancho das Flores”. Ficou um primor! Em São Paulo, nos anos 60, havia um famoso ponto de encontro de artistas e intelectuais cujo nome era uma espécie de paródia com o do mestre clássico. Chamava-se João Sebastião Bar. Tudo isso em homenagem a um compositor que nasceu no século XVII (em 31 de março de 1685)!

Será que nossas obras e nosso nome sobreviverão por tanto tempo? Ou, para ser mais modesto, se manterão vivos e atuais por pelo menos um século? Bem, não digo que sim ou que não. Isso depende e não de um único fator, mas de vários deles. Primeiro, e principalmente, depende da qualidade do que viermos a produzir. Segundo, do quanto nossa produção venha a ser conhecida. Há muita obra genial, de primeiríssima qualidade, que caiu no mais absoluto ostracismo, a ponto de ninguém se lembrar dela, por falta de divulgação. A sobrevivência depende, também, das circunstâncias e desse fator aleatório, que a maioria chama de “sorte”, mas que prefiro denominar de acaso.

Quem tem o privilégio, e mais, a felicidade de conhecer a obra de Johann Sebastian Bach sabe o quanto ela é genial. Há consenso a respeito, tanto por parte das pessoas do meio musical, notadamente da música erudita, quanto dos leigos, meros “consumidores” (e, logicamente, apreciadores). Anotei algumas citações a respeito. Ludwig van Beethoven, por exemplo, que nasceu cinco anos antes da morte do genial compositor (e, portanto, não chegou, propriamente, a ser seu contemporâneo), assim se expressou sobre ele: “Um herege se converte ouvindo Bach”.

Não se limitou, todavia, a isso. Em outra declaração, afirmou: “Bach é tão grande, que deveria se chamar oceano”. Aqui cabe um esclarecimento, para que o leitor entenda o alcance dessa citação. “Bach”, em alemão, quer dizer “riacho”. No entender de Beethoven, porém, sua genialidade é tamanha que só é comparável, mesmo, à vastidão do oceano. Será que algum dia, passados, digamos, dois séculos da nossa morte, alguém poderá dizer (e dirá) o mesmo a nosso respeito?

Outra declaração digna de nota, sobre o compositor alemão, é a que foi dada pelo espanhol Pablo Casals. O notável violoncelista, ressalte-se, nasceu mais de cem anos após a morte de Sebastian Bach. Conheceu, portanto, “apenas” (o que é essencial, claro) sua obra. O referido músico declarou: “Pela manhã, no começo do meu dia, eu preciso de Bach mais do que água e comida. E isto é Bach. Eu preciso de perfeição e alegria”. Eu também, óbvio, tenho essa necessidade. Tanto que estou redigindo estas reflexões tendo ao fundo uma das inspiradoras peças do gênio alemão.

Para os apreciadores da “música eterna”, rigorosamente atemporal, que queiram saber mais a respeito da vida e das circunstâncias dos seus criadores, recomendo uma série de biografias escritas pela dupla Opel Wheeler e Sybil Deucher. Procurei referências a propósito desses biógrafos, mas não fui feliz em minhas pesquisas. Não importa. O que conta são as biografias que ambos escreveram, encontradas em boas livrarias e em sebos, para os que pensam em economizar.

Pode-se dizer que a dupla biografou a grande maioria dos mestres da música erudita, esses “arautos da alegria”. O que me chamou a atenção, além do teor desses livros, são seus títulos. Soam-me a poesia pura, sem tirar e nem pôr. Querem ver se não? Pois reproduzo o de alguns: “Frederic Chopin, o filho da Polônia”, “Mozart, o menino prodígio”, “Franz Schubert e seus alegres amigos”, “Ludwig van Beethoven e os sinos do campanário”, “Haendel na corte dos reis”, “Paganini, mestre do violino”, “Joseph Haydn, o camponesinho alegre” e “Johann Sebastian Bach, o menino da Turingia” .

Os livros escritos pela dupla não são apenas estes, mas creio que estes exemplos comprovam o que afirmei. Quase todos esses grandes mestres foram meninos prodígio, revelaram seu fabuloso talento precocemente e legaram à humanidade obras a salvo de críticas e restrições. Mozart, por exemplo, com cinco anos de idade, já era um compositor de maior criatividade e rigor técnico do que a imensa maioria dos existentes hoje. Destaque-se que uma única peça desses gênios, de duração de uma hora e meia ou mais, equivale à produção total, à totalidade das obras dos compositores populares de hoje (cujas composições duram, no máximo, cerca de três minutos). E eles compuseram centenas delas, de perfeição formal admirável.

Há pessoas que vêm ao mundo para enriquecer nossas vidas, enchendo-as de beleza e enfatizando e embelezando esta aventura tão curta e tão instável e que por isso tem que ser valorizada. Os gênios que citei (e os tantos que não mencionei) estão neste caso. Tendo por matéria-prima algo tão abstrato e sutil, como são os sons, mexem como ninguém com nossa sensibilidade e imaginação e fazem nossa alma vibrar, cantar e dançar de alegria.



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