Pedro J. Bondaczuk
A trajetória de um grupo de mulheres argentinas, que há dez anos ousou desafiar os poderosos, para reclamar pela vida dos seus entes queridos, vai do trágico ao heróico. Senhoras simples, que emergiram do povo, quando muito da classe média, fizeram o que naqueles tempos duros muito marmanjo, que esbravejava bravatas em âmbito restrito, não tinha a coragem de fazer. Ousaram encarar os verdugos de seus filhos, maridos, irmãos e namorados e, sob o lema “com vida os levaram, com vida os queremos”, exigiram o que nas ditaduras soa como pilhéria: seus direitos de cidadãs. Mais do que isso: defendiam os direitos humanos e, a maioria delas, os de mães.
Sua atitude pareceu (aos donos do poder) tão insólita, tão fora de propósito para as circunstâncias da época que foi classificada de “loucura”. Foi por causa dessa pretensa insensatez, inclusive, que elas ganharam projeção internacional. Como suas vigílias, para reclamar notícias dos parentes desaparecidos, eram feitas, todas as quintas-feiras, em frente à Casa Rosada, na tradicional “Plaza de Mayo” (para nós, Praça de Maio), no centro de Buenos Aires, receberam o apelido – em tom jocoso, de visível menosprezo por parte das forças de segurança (e de muitos cidadãos que hoje tentam ostentar imagem de “democratas”) – como “las locas”. Ou seja, em português, “as loucas”.
Somando-se esse epíteto xistoso e que tinha propósito desabonador, ao local em que essas mulheres se reuniam, passaram a ser mencionadas na imprensa (a princípio a argentina e posteriormente a internacional) de uma forma significativa. Eram “Las Locas de La Plaza de Mayo”, ou “As Loucas da Praça de Maio”.
Suas manifestações começaram em 30 de abril de 1977. Naquela época, a chamada “Guerra Suja” (todas são!) mal estava começando. Diariamente, dezenas, centenas de cidadãos eram arrebatados, sem mais e sem menos, com base em simples suspeitas ou até em irresponsáveis denúncias de inimigos gratuitos, de seus lares e conduzidos sabe-se lá para onde, onde, em geral, eram barbaramente torturados para que confessassem seus “crimes”, os tivessem cometido ou não, não importava.
Mesmo que essas pessoas fossem culpadas (e a maioria não era), nos tempos que vivemos, praticamente nos umbrais do Terceiro Milênio da Era Cristã, atitudes como estas não se justificam em nenhuma circunstância. Nem os broncos das cavernas agiam com tamanha truculência.
Há todo um trâmite legal para se determinar e, principalmente, para se comprovar a culpa de alguém. Mas nas ditaduras, nada disso é levado em conta. Regimes desse tipo significam não somente a ruptura do Estado de Direito, mas até da razão. É a lei da selva que vale, com o forte subjugando, tiranizando e muitas vezes trucidando o fraco.
E desses porões lôbregos e sombrios, câmaras de horrores, ou de escondidos descampados, ou de edifícios abandonados, para onde eram conduzidos, esses alegados “suspeitos”, jamais regressavam. Eram mortos, sob tortura e se dava sumiço aos seus restos mortais.
Oficialmente, 9 mil acusados de crimes políticos foram sepultados clandestinamente. Todos mortos, sob indescritíveis torturas. Fontes oficiosas, todavia, asseguram que esse número de massacrados foi muito, muitíssimo maior. Teria atingido a pelo menos 30 mil civis!
É como se uma peste terrível se abatesse, da noite para o dia, sobre determinado povoado e dizimasse toda a sua população, sem deixar um único para testemunha. Como se todos, absolutamente todos homens, mulheres, velhos e crianças fossem dizimados. Ninguém, sobre quem pesou o mínimo tipo de suspeita, escapou vivo desse período de insanidade e de fúria.
Foi contra isso que estas mulheres ousaram se rebelar. E não se diga (a bem da verdade) que o fizeram impunemente. Algumas também figuraram entre os desaparecidos. Além das agressões gratuitas e despropositadas e das humilhações de toda a sorte a que foram submetidas, algumas, presas na Igreja de Santa Cruz, tiveram o mesmo destino dos parentes, cujas notícias procuravam. Ou seja, tornaram-se, por seu turno, igualmente “desaparecidas”.
Por isso, a denominação de “loucas”, que lhes foi dada, não era completamente sem fundamento. Não, pelo menos, para os que não tinham coragem de reivindicar nem mesmo seus mais sagrados direitos. Para estes, o ato dessas senhoras era não somente extrema temeridade, mas absoluta loucura.
Isto, porém, tem outro nome: coragem. É integridade! É força de caráter! É convicção no império da justiça e da lei! É loucura defender a vida? É loucura reclamar do Estado aquilo que por direito não lhe pertence, ou seja, os indivíduos que não gerou, não criou, não instruiu, por se tratar de entidade abstrata, de mero conceito? É loucura lutar contra as tiranias, não importa de qual natureza? Naquelas circunstâncias, para os tíbios, era! Bendita essa loucura, de mães amorosas, que têm o condão de redimir os homens da sua selvajaria e prepotência!!!
(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 1 de maio de 1987).
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